Frases.Tube

Nivea Almeida

FRAGMENTO DO INFINITO
Defronte uma folha em branco, tentei escrever algo sobre o amor amigo.
Depois da lixeira cheia de papéis amassados, descobri que os amigos moram em um cômodo no coração com proteção acústica.
Apurei os ouvidos mas foi impossível ouvir o que saía de lá Mas deu para sentir as vibrações! Parecia uma festa, daquelas de arromba, danças em sincronia e coloridos fogos de artifício em composição.
Não fiquei satisfeita e procurei um doutor pra tirar uma “chapa” (eu precisava ver aquilo! ) Mas por mais que eu apurasse o olhar, não consegui enxergar nada de diferente naquele plástico escuro e manchado.
Percebi que onde os amigos moram é invisível aos olhos, está tão diluído, faz tão parte da gente que acaba correndo nas veias, explode em sorriso e aquece a nossa alma!
Por fim, faltou me inspiração e tentei em vão folhear o velho dicionário procurando palavras mais adequadas, e percebi que os melhores e mais queridos amigos surpreendentemente ouvem o nosso silêncio, lêem o nosso olhar, compreendem a nossa distância e ausência, entendem quando desmarcamos um compromisso, quando adiamos um abraço, quando não podemos brindar a felicidade compartilhada E acima de tudo, são capazes de nos amar quando menos merecemos
O amor amigo é um mistério para poucos revelado.
Um elixir para ressignificar e nutrir a vida e germinar os nossos íntimos terrenos áridos.
Amigos são mágicos que nos encantam e envolvem sem coelhos na cartola; são alienígenas que nos abduzem sem espaçonaves tecnológicas, nos levando para lugares recônditos e ocultos Dentro de nós mesmos.
Concluí então que o amor amigo é um fragmento do infinito: quanto mais você oferecer, mais você receberá

DEIXE A CAIR!
– Mamãe, você está chorando
Mesmo disfarçando ela percebeu.
De mãos dadas na porta de saída do restaurante, observávamos a chuva que havia iniciado e nos impedia de seguir.
– Sim, meu amor, mamãe está ficando velha e boba e se emocionou com a chuva.
– Reparei então, pelo seu semblante, que não havia entendido bem a minha resposta.
Continuei: – Chuva é riqueza para nosso povo tão pobre de água.
– Mamãe, mas estamos sem guarda chuva.
Como chegaremos até o carro Está bem forte.
– Alertou a minha pequena, sempre tão prática e racional, e naquele momento também preocupada com o horário do prometido cinema.
– Não se preocupe, filhinha.
Para a chuva, temos todo o tempo do mundo.
Deixe a cair! O Sertão está com tanta sede E vê la assim, tão densa, é bem melhor do que qualquer filme, tenha certeza.
Nesse momento, ajoelhei para ficar da sua altura.
Eu poderia ter só me abaixado, é verdade, mas era de joelhos que todo o meu Ser queria estar naquela hora.
Na perspectiva visual da minha menina, pude observar ao longe um grupo de jovens em algazarra tomando banho na chuvarada, gritando, cantando, dançando e pulando poças.
Nos edifícios, várias pessoas debruçadas nas janelas, sorrindo e observando a água cair.
Os carros passando, vagarosamente, vidros entreabertos e os “caronas” com as mãos para fora (pelo jeito buscando sentir as grossas gotas ao encontro da própria pele).
Um senhor que passava ali portava um guarda chuva fechado (e não parecia ter a intenção de abri lo), e o vi pedir muito sorridente um “saquinho plástico” ao garçom do restaurante que estávamos, decerto para proteger o celular enquanto enfrentasse o aguaceiro.
Cada um demonstrando a sua emoção de um jeito diferente.
Continuamos ali paradas por mais alguns minutos, abraçadas, nos deliciando com o cheiro, o som e a visão daquele precioso evento, que alegrou sobremaneira o nosso domingo.

CARTA AO BOM VELHINHO
Confesso, eu fui uma péssima garota esse ano.
Fiz um monte de bobagens imperdoáveis.
Julguei os que mendigavam nos sinais, só dispondo moedas àqueles que não tinham cheiro adocicado de álcool (ou não pareciam entorpecidos).
Comi uns chocolates na madrugada sem que ninguém soubesse: a TPM era mais forte do que eu.
Desculpei me dizendo que não estava passando bem, mas na verdade o compromisso é que era mesmo muito chato.
Gritei palavrões cabeludos perto da minha filha quando o pneu do carro entrou em buracos (e, falando nisso, acho que também ultrapassei a velocidade máxima permitida algumas vezes).
Viajei para lugares paradisíacos no meio de reuniões enfadonhas.
Perdi a paciência e a sanidade com gente lerda e preguiçosa.
Bebi menos água do que devia, e outras vezes tive que encerrar uma conversa pela metade pois não aguentava mais segurar o xixi.
Fiz caretas e até distanciei o equipamento do ouvido enquanto conversava com idiotas ou tagarelas ao telefone.
Dormi bem menos do que devia, e fui bem mais exigente comigo mesma do que era preciso.
Menti a idade um bom par de vezes.
Julguei injustamente pneuzinhos, covardia, fraqueza, fracasso, desemprego e ignorância alheia como desleixo.
Deixei de dizer alguns “nãos” na hora certa.
Fiquei um pouco mais de tempo que eu queria dedilhando o smartphone.
Por vezes esqueci de anotar certas coisas importantes E acabei me esquecendo de vez.
E, mais um ano termina, e eu não consegui aniquilar a vaidade, o orgulho e fundamentar o exercício do desapego.
Mas, nem tudo são só espinhos.
Em contrapartida, experimentei lugares e sabores novos.
Tive um pouco mais de paciência com as pessoas que convivo.
Fiz novos e excelentes amigos.
Sorri o quanto pude, e dentro das minhas limitações, tentei não perder a compostura.
Calei quando percebi que só devia escutar.
Aprendi, enfim, a sair de conversas improdutivas, principalmente das que se falavam mal de um ausente.
Evitei entrar em brigas e debates presenciais e em rede e encontrei sabedoria em fontes alternativas.
Assisti às séries que eu bem quis.
Vi filmes e li livros que todo mundo rechaça, só pelo prazer de ter a minha própria opinião.
Voltei a ouvir lindas músicas esquecidas, e me permiti sentir profundas saudades de quem já se foi.
Importei muito menos com a opinião dos outros, e acabei saindo sábados pela manhã sentindo me linda, apesar de um vestidinho roto e “maquiada” somente com óculos escuros.
Fui em todas as festas, comemorações, jantares e festejos que pude, e perdi o controle com a bebida uma única vez.
Tentei não sofrer tanto com a insônia, ocupando aquelas horas inertes com algo que me pudesse fazer feliz.
Consumi muito menos alimentos industrializados e melhorei sobremaneira a minha consciência alimentar.
Sorvi de camarote cada um dos 365 dias da minha filha.
Troquei meus travesseiros por outros bem mais macios.
Pintei a casa de outra cor.
Comecei a chorar por sensibilidade, e acho que esse foi um dos grandes trunfos desse ano.
Não sei ao certo se nesse balanço da vida eu mereça algum presente.
Não precisa ser complacente se eu não fizer jus.
Mas se algo eu puder pedir, quero saúde para ver a minha filha crescer.
Quero disposição para trabalhar por mais tantos anos.
Quero mais sabedoria para todos os enfrentamentos durante essa caminhada pedregulhosa.
Quero senso crítico cada vez mais apurado para que as minhas “lentes” não embacem diante desse fumacê insistente que os jornais mostram.
Quero forças para fugir das tentações (como, por exemplo, um taco generoso de um bolo prestígio).
Renove a minha vontade de realizar cada um dos meus sonhos, e preciso de serenidade quando a realização deles delongar um pouco mais pelo envolvimento de terceiros.
Por fim, quero lucidez suficiente para não caminhar com a boiada.
E, “para não dizer que não falei das flores”, uma rebarbinha do Prêmio da Mega Sena da Virada não seria nada mau também, hein

ROGO LHE UMA PRAGA!
Permita me! Rogo lhe um praga: Você nunca será capaz de me esquecer!
Toda vez que se deparar com uma curva mais fechada na estrada Lembrará, inelutavelmente, de que quando eu me calava, era enjoo que eu sentia.
Toda vez que sorver o aroma de um incenso Lembrará, infalivelmente, que eu sempre perfumava a nossa convivência conflagrando algum bálsamo especial.
Toda vez que observar os fogos de artifício colorirem o céu nas noites de Réveillon Lembrará, irrevogavelmente, que era ao meu lado que você estava na Princesinha do Mar.
Toda vez que você se arrumar para sair Lembrará, obrigatoriamente, daquele perfume forte e adocicado que você aspergia e brandia as minhas entranhas.
Toda vez que deparar pelas ruas com alguma beldade de cabelos afogueados Lembrará, inevitavelmente, da sua pequena raposinha camaleoa.
Toda vez que, derramado em seu coxim, assistir ao seu time favorito na TV Lembrará, necessariamente, das vezes que estive ali ocupando sonolenta o espaço em seu colo.
Toda vez que o seu corpo for balouçado enquanto alguma música dançante tocar Lembrará, fatalmente, que foi enlaçado em mim que você aletradou os seus primeiros passos.
Toda vez que assistir a um filme no cinema Lembrará, absolutamente, das nossas inteligentes sessões comentadas rodeadas de comida oriental.
Todas as vezes que se deparar com uma palavra nova em outro idioma Lembrará, irreparavelmente, da minha nada melodiosa voz cantarejando um trecho de alguma música com aquele vocábulo.
Toda vez que observar uma tatuagem colorida, se destacando em alguma derme Lembrará, decisivamente, da lenda do Navio Fantasma, que eu te contei para eu poder fazer só mais duas.
Toda vez que estiver na cama, pronto para dormir Lembrará, irremediavelmente, de que eu gostava de “boas noites” com flores, corações e pronomes possessivos.
Toda vez que você abrir as suas gavetas e procurar alguma roupa Lembrará, invencivelmente, do quanto eu me deliciava com o furto e o conforto de dormir sorrateira com alguma de suas regatas.
Toda vez que retornar arranhado de uma nova ou frequente peripécia Lembrará, irremissivelmente, que sempre oferecia os meus beijos, carinhos e chás para debelar os seus machucados.
Toda vez que sacudir a coqueteleira, misturando as frutas, o gelo e o rum Lembrará, forçosamente, daquela única noite que, eu até evitei a vodca, mas acabei me afogando no último copo de uísque.
Toda vez que o aroma do café forte coado invadir a sua vivenda Lembrará, implacavelmente, que nenhum prolapso me privaria de amanhecer assim.
Toda vez que perceber alguma dama com a boca, os saltos e as unhas escarlates Lembrará, inexoravelmente, que foi de carmim que eu me pintei para o nosso primeiro encontro.
E se por fim e por ventura Requerer uma oração que te livre dessa jura Substituído precisará ser o seu coração, para que, enfim, se desfaça essa sua bendição.
Amem!

ASSIM CAMINHA A HUMANIDADE
Nove de Outubro de 2015, Sexta feira, 7:45h da manhã.
Avistei ao longe um casal de velhinhos já octogenários.
Ela na frente, os pés inchados por alguma patologia, arrastava com dificuldade um carrinho de feira vazio.
Ele, logo atrás, magrinho de dar dó, se equilibrava em uma bengala em passos trôpegos.
Verdade que não havia faixa de pedestres ali; rua tranquila, sem outros carros passando.
Parei o meu e fiz sinal para que pudessem atravessar calmamente, não me custando nada esperá los.
Um meio sorriso se esboçou na fronte da senhorinha e, passo a passo, foram tomando a rua rumo ao outro lado.
O senhorzinho segurou o ombro de sua senhora com uma mão para dar impulso ao passo e ajudar a bengala em seu equilíbrio, vagarosamente.
Avistei pelo retrovisor uma motociclista que vinha logo atrás em uma velocidade baixa, mas suficiente para que eu pudesse colocar o meu braço para fora e balançá lo, em sinal de “venha devagar mais devagar”.
A motociclista ignorou o meu gesto, ignorou a esquina possivelmente embalada musicalmente pelos fones de ouvido logo abaixo do capacete.
Ultrapassou o meu carro e freou bruscamente em cima do casal de velhinhos.
O susto foi tamanho que os dois foram ao chão corpos, bengala, carrinho de feira, respeito, civilidade.
Tudo caído no asfalto.
A motociclista continuou “empinada” em sua moto e não fez nenhuma menção de ajudá los, não moveu um músculo sequer e eles estatelados no chão.
Abri a porta do meu carro e saí e, antes que eu pudesse fazer algo, o velhinho, com toda a dificuldade e com certa rapidez olímpica para a sua idade, se levantou do chão, levantou a sua senhora com os joelhos ensanguentados e pegou a sua bengala.
Em pé na porta do meu carro, pude ver uma cena similar às populares surras que ocorreram nas novelas globais “Senhora do Destino” e “Celebridade”.
O velhinho, juntando as forças de seus braços magros, “empunhou” a sua bengala como se fosse uma espada e, como se tivesse tomado um elixir da juventude, desferiu golpes na motociclista posuda.
Um, dois, três, quatro, no retrovisor da moto, no ombro dela, no tanque na moto, nas pernas dela.
Aí sim, ela reagiu, se movimentou, pois AGORA sim, era com ela, antes não! Ela começou a gritar “velho louco! velho louco! ” e ele, com a sua “bengala sabre de luz”, tentava fazer alguma justiça com as próprias mãos, ainda muito trêmulas, pela idade e também pelo susto.
A motociclista arrancou a sua moto dali “gesticulando palavrões” deixando o velhinho ainda agitado e nervoso.
Deixei o carro em direção aos dois para prestar alguma ajuda, pois os ferimentos físicos e emocionais eram visíveis.
Peguei a minha garrafinha de água e ofereci a senhorinha sentada na calçada.
Perguntei se poderiam entrar em meu carro para levá los até o Pronto Atendimento, mas não aceitaram, alegando que estavam bem e precisavam fazer a “feira do mês”, em um supermercado próximo dali.
Se levantaram, sacudiram a poeira; a senhorinha enxugou o suor e as lágrimas com um roto lenço, ajeitou seus cabelos e também o boné na cabeça de seu senhor, e, ambos, continuaram os seus vagarosos passos apoiados um no outro (creio agora que mais tristes e decepcionados do que quando se levantaram pela manhã).
Isso tudo não durou 5 minutos de relógio, e escrevo para que fique uma pequena eternidade em registro.
Foi tudo muito rápido, mas não pude deixar de notar que, no veículo da descerebrada motociclista estava adesivado: “Livrai me de todo mal, amém”.
No mínimo, irônico.

COMERCIAL DE MARGARINA COLETIVO
.
Em uma quarta feira qualquer
Juntei palavras em um texto que mudaria a vida
Colei madrugadeira pelos muros da cidade.
.
Amanheceu.
Quem leu, boquiabriu
A lavadeira deixou a trouxa cair
O ciclista por pouco não trombou no poste
A correria foi tanta
Que ventou nas saias das meninas
O semáforo piscando feito luz de Natal
O rasante do pássaro assustou o guri
Que caiu para trás com o peso da mochila
O caderno se abriu
E folhas escritas bateram asas naquela direção
Nuvens escuras foram se despedindo
O sol morninho arrancou suspiros e agasalhos
(Os ousados despiram também outras partes)
Moças desprenderam cabelos, retocaram batom
O casal tímido resolveu se abraçar
A senhorinha girando a bengala no ar
Uma música começou a tocar Aaah!
.
E em uma quarta feira qualquer
(Se contar ninguém acredita)
O tempo parou, o povo dançou
E por um minuto eterno a tristeza se foi
Em fileiras sincronizadas
Mãos levantadas, corpos embalados
No compasso da música
Uma chuva multicolorida caiu do céu
Cada gota pintava o cenário
Um sabor diferente em cada cor
Línguas de fora, braços em ondas
Toda dor subindo, girando em espiral
Desconhecidos se abraçaram
Pretos, brancos, ricos ou pobres
Motoristas estacionando os carros
A vaidade, os falsos pudores, a vergonha
Arrastados pela enxurrada multicor
Sorrisos escancarados, mãos dadas
Ritmo que todo mundo sabia de cor
.
E em uma quarta feira qualquer
(E pela primeira vez na história)
Um comercial de margarina coletivo
O ódio, o rancor, a inveja, a desumanidade
Feito lagartixas cascudas subindo os muros
Explodiram como pipoca em óleo quente
Desabrochando flores perfumadas
Confortando o coração de toda a gente