Ainda na Praça do Russel encontro com 'Biafra' 7h25.
Pode ser visto bem cedo com uma espécie de lata de tinta um pouco mais profunda onde guarda suas coisas conectada a um pneu de bicicleta, que serve como uma alça para carregar sua bolsa no ombro.No meio da tampa, vejo colado uma foto do cantor Biafra.
Tudo toscamente feito.
Ou nem feito.
Biafra aprendeu a não descartar as coisas tão rápido.
Por isso, seu latão, ou melhor, sua bolsa, é composta também por uma série de pregos martelados ao redor da tampa, dando a forma da desgraça.
Nos espaços entre os pregos, observo formigas num entra e sai como se o latão fosse um apartamento de formigas.
Ele diz: "Ah se elas comerem toda a minha maça.
Tive que usar os pregos como solda, e meu baú deixou de ser impermeável", justifica.
Pergunto se ele pode abrir seu armário para eu observar melhor.
"Minha vida é um livro aberto, pegue você mesmo".
Abro o latão e uma camisa do Botafogo, número 7.
Em seguida, formigas.
Logo depois, a maça, um pente, uma faca pequena e uma carteira do exército com sua foto, 19 anos, servindo no Forte de Copacabana.
Apenas isso.
Pergunto sobre a blusa do Botafogo enquanto guardo tudo novamente no latão e ele responde: "Não gosto de futebol.
Achei essa camisa jogada no aterro e peguei".
Pergunto sobre o pente: "Tem uma moça que gosta de mim, e como não sei quando ela aparecerá novamente é bom estar sempre com ele aí." Não pergunto sobre a maçã, pois, por precaução, já me antecipo: "você não tem cara de assaltante Biafra, ou, se tem, agora não tem mais porque sou eu, então a maçã é pra comer e a faca pra cortá la.
Ele nada responde.
Pergunto sobre a foto do Exército no Forte de Copacabana e ele diz que é apenas uma foto.
"Isso aí é melhor não lembrar".
Pergunto se ele deseja que eu coloque novamente as formigas no latão e tento quebrar uma potencial lembrança ruim.
Ele reponde então que poderia fazer um latão pra mim, pois teria me achado "um cara legal" e "diferente".
Digo que meu negócio é mulher e ele cai na risada.
Mas, depois da brincadeira, observo a mega elefantíase ou algo que não seja menos do que isso em uma das suas pernas.
"Pô, Biafra, e eu que sou diferente O que você arrumou aí na perna, cara, já foi num hospital " Ele reponde: "Fui no Rocha Maia, UPA, num monte de lugar e todo mundo olha e diz que tenho que ir a outro lugar.
Desisti faz tempo, Ninguém encosta." Digo apenas "entendi" e sigo meu caminho.
Fato é que nunca mais conseguirei escutar as palavras lata, latão, tinta ou latas de tinta, e não lembrar do Biafra.
Quis tocar no assunto "Deus", mas só deu tempo de escutá lo dizer que é algo difícil de acreditar.
E completou: "Não pra você rapaz, e sim pra mim".
Possivelmente não terá nem um enterro em cova rasa pago pela municipalidade, pois a mesma não quis nem tratar a sua perna.
Uma coisa, porém, é certa: irá para o mesmo lugar onde vão os reis de verdade.