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Rubem Alves

Pato selvagem:
Era uma vez um bando de patos selvagens que voava nas alturas.
Lá de cima se via muito longe, campos verdes, lagos azuis, montanhas misteriosas e os pores de sol eram maravilhosos.
Mas voar nas alturas era cansativo.
Ao final do dia os patos estavam exaustos.
Aconteceu que um dos patos, quando voava nas alturas, olhou para baixo e viu um pequeno sítio, casinha com chaminé, vacas, cavalos, galinhas e um bando de patos deitados debaixo de uma árvore.
Como pareciam felizes! Não precisavam trabalhar.
Havia milho em abundância.
O pato selvagem, cansado, teve inveja deles.
Disse adeus aos companheiros, baixou seu voo e juntou se aos patos domésticos.
Ah! Como era boa a vida, sem precisar fazer força.
Ele gostou, fez amizades.
O tempo passou.
Primavera, verão, outono, inverno
Chegou de novo o tempo da migração dos patos selvagens.
E eles passavam grasnando, nas alturas
De repente o pato que fora selvagem começou a sentir uma dor no seu coração, uma saudade daquele mundo selvagem e belo, as coisas que ele via e não via mais: os campos, os lagos, as montanhas, os pores de sol.
Aqui em baixo a vida era fácil, mas os horizontes eram tão curtos! Só se via perto!
E a dor foi crescendo no seu peito até que não aguentou mais.
Resolveu voltar a juntar se aos patos selvagens.
Abriu suas asas, bateu as com força, como nos velhos tempos.
Ele queria voar! Mas caiu e quase quebrou o pescoço.
Estava pesado demais para o voo.
Havia engordado com a boa vida E assim passou o resto de sua vida, gordo e pesado, olhando para os céus, com nostalgia das alturas
(Ostra feliz não faz pérola)

Num dos meus momentos de vagabundagem, um pensamento me apareceu que fez uma ligação metafórica entre lâmpadas e inteligências que nunca me havia passado pela cabeça.
Tratei, então, de seguir a trilha.
As lâmpadas servem para iluminar.
Para isso são dotadas de potências de iluminação diferentes.
Há lâmpadas de 60 watts, de 100 watts, de 150 watts etc.
Qual é a melhor lâmpada Parece que as de 150 watts são as melhores porque iluminam mais.
Também as inteligências servem para iluminar.
Tanto assim que se diz "tive uma ideia luminosa! ".
E nos gibis, para dizer que um personagem teve uma boa ideia, o desenhista desenha uma lâmpada acesa sobre a sua cabeça.
E também as inteligências, à semelhança das lâmpadas, têm potências diferentes.
Os psicólogos inventaram testes para atribuir números às inteligências.
A esses números deram o nome de QI, coeficiente de inteligência.
Segundo as mensurações dos psicólogos, há QIs de 100, de 150, de 200 Ah! Uma pessoa com QI200 deve ser maravilhosa! Porque, como todo mundo sabe, inteligência é coisa muito boa! Porque, como todo mundo sabe, inteligência é coisa muito boa.
Todo pai quer ter filho inteligente.
Mas as lâmpadas não são objetos de contemplação.
Não se fica olhando para elas.
Olhamos para aquilo que elas iluminam.
Uma lâmpada de 150 watts pode iluminar o rosto contorcido de um homem numa câmara de torturas.
E uma lâmpada de 60 watts pode iluminar uma mãe dando de mamar ao filhinho.
As lâmpadas valem pelas cenas que iluminam.
As inteligências valem pelas cenas que iluminam.
Há inteligências de QI 200 que só iluminam esgotos e cemitérios.
E há inteligências modestas, como se fossem nada mais que a chama de uma vela, que iluminam o rosto de crianças e jardins.
A inteligência pode estar a serviço da morte ou da vida.
A inteligência, pobrezinha, não tem o poder para decidir o que iluminar.
Ela é mandada.
Só lhe compete obedecer.
As ordens vêm de outro lugar.
Do coração.
Se o coração tem gostos suínos, a inteligência iluminará chiqueiros, porcos e lavagem.
Se o coração gosta de crianças e jardins, a inteligência iluminará crianças e jardins.
Por isso é mais importante educar o coração que fazer musculação na inteligência.
Eu prefiro as inteligências que iluminam a vida, por modestas que sejam.