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José Saramago

Dizem que o reino anda mal governado, que nele está de menos a justiça, e não reparam que ele está como deve estar, com sua venda nos olhos, sua balança e sua espada, que mais queríamos nós, era o que faltava, sermos os tecelões da faixa, os auferidores dos pesos e os alfagemes do cutelo, constantemente remendando os buracos, restituindo as quebras, amolando os fios, e enfim perguntando ao justiçado se vai contente com a justiça que se lhe faz, ganhado ou perdido o pleito.
Dos julgamentos do santo ofício não se fala aqui, que esse tem bem aberto os olhos, em vez da balança um ramo de oliveira, e uma espada afiada onde a outra é romba e com bocas.
Há quem julgue que o raminho é da paz, quando está muito patente que se trata do primeiro graveto da futura pilha de lenha, ou te corto, ou te queimo, por isso é havendo que faltar à lei, mais vale apunhalar a mulher, por suspeita de infidelidade, que não honrar os fiéis defuntos, a questão é ter padrinhos que desculpem o homicídio e 1000 cruzados para pôr na balança, nem é para outra coisa que a justiça a leva na mão.
Castiguem se lá os negros e os vilões para que não se perca o valor do exemplo, mas honre se a gente de bem e de bens, não lhe exigindo que pague as dívidas contraídas, que renuncie à vingança, que emende o ódio, e, correndo pleitos, por não se poderem evitar de todo, venham a rabulice, a trapaça, a apelação, a praxe, os ambages, para que vença tarde quem por justiça justa deveria vencer cedo, para tarde perca quem deveria perder logo.
É que, entretanto, vão se mungindo as tetas do bom leite que é o dinheiro, requeijão precioso, supremo queijo, manjar de meirinho e solicitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador, se falta algum é porque o esqueceu o Pe.
Antonio vieira e agora não lembra.

As palavras são boas.
As palavras são más.
As palavras ofendem.
As palavras pedem desculpa.
As palavras queimam.
As palavras acariciam.
As palavras são dadas, trocadas, oferecidas, vendidas e inventadas.
As palavras estão ausentes.
Algumas palavras nos absorvem, não nos deixam: são como garras, vem nos livros, nos jornais, nos mensagens publicitárias, nos rótulos dos filmes, nas cartas e nos cartais.
As palavras aconselham, sugerem, insinuam, intimidam, impõem, segregam, eliminam.
São melífluas ou ácidas.
O mundo gira sobre palavras lubrificadas com azeite de paciência.
Os cérebros estão cheios de palavras que vivem em paz e em harmonia com suas contrárias e inimigos.
Por isso a pessoas fazem o contrario do que pensa crendo pensar o que fazem.
Há muitas palavras.
E estão os discursos, que são palavras apoiadas umas em outras, em equilíbrio instável graças a uma sintaxe precária finalizadas com chave de ouro: “Graças.
Digo”.
Com discursos se comemora, se inaugura, se abrem e cerram sessões, se lançam cortinas de fumo o se dispõem cortinas de veludo.
São brindes, orações, conferências e colóquios.
Por meio dos discursos se transmitem louvores, agradecimentos, programas e fantasias.
E logo as palavras dos discursos aparecem postas em papéis, pintadas em tinta de imprensa “e por essa via entram na imortalidade do Verbo.
Ao lado de Sócrates, o presidente da junta domina o discurso que abriu o torneira da fonte.
E fluem as palavras, tão fluidas como o “precioso líquido” .
Fluem interminavelmente, inundam o solo, chegam até as joelhos, à cintura, a os ombros, ao colo.
É o dilúvio universal, um coro desarmado que brota de milhares de bocas.
A terra segue seu caminho envolta em um clamor de loucos, a gritos, a berros, envolta também em um murmúrio manso represado e conciliador.
De todo há no coro: tenores e contraltos, cantantes baixos, sopranos de dó de peito fácil, barítonos acolchoados, contraltos de voz surpresa.
Nos intervalos se ouve o ponto.
E todo isso aturde as estrelas e perturbam as comunicações, como as tempestades solares.
Porque as palavras têm deixado de comunicar.
Cada palavra é dita para que não se ouça outra.
A palavra, até quando não afirma, se afirma: a palavra é a erva fresca e verde que cobre os dentes do pântano.
A palavra não mostra.
A palavra disfarça.
Daí que resulte urgente podar as palavras para que a plantação se converta em colheita.
Daí que as palavras sejam instrumento de morte ou de salvação.
Daí que a palavra só valha o que vale o silêncio do ato.
Há, também, o silêncio.
O silêncio é, por definição, o que não se ouve.
O silêncio escuta, examina, observa, pesa e analisa.
O silêncio é fecundo.
O silêncio é a terra negra e fértil, o húmus do ser, a melodia calado sob a luz solar.
Caem sobre ele as palavras.
Todas as palavras.
As palavras boas e as más.
O trigo e o joio.
“Mas só o trigo dá pão”.