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Fabrício Carpinejar

Cometa bobagens.
Não pense demais porque o pensamento já mudou assim que se pensou.
O que acontece normalmente, encaixado, sem arestas, não é lembrado.
Ninguém lembra do que foi normal.
Lembramos do porre, do fora, do desaforo, dos enganos, das cenas patéticas em que nos declaramos em público.
Cometa bobagens.
Dispute uma corrida com o silêncio.
Não há anjo a salvar os ouvidos, não há semideus a cerrar a boca para que o seu futuro do passado não seja ressentimento.
Demita o guarda chuva, desafie a timidez, converse mais do que o permitido, coma melancia e vá tomar banho de rio.
Mexa as chaves no bolso para despertar uma porta.
Cometa bobagens.
Não compre manual para criar os filhos, para prender o gozo, para despistar os fantasmas.
Não existe manual que ensine a cometer bobagens.
Não seja séria; a seriedade é duvidosa; seja alegre; a alegria é interrogativa.
Quem ri não devolve o ar que respira.
Não atravesse o corpo na faixa de segurança.
Grite para o vizinho que você não suporta mais não ser incomodada.
Use roupas com alguma lembrança.
Use a memória das roupas mais do que as próprias roupas.
Desista da agenda, dos papéis amarelos, de qualquer informação que não seja um bilhete de trem.
Procure falar o que não vem à cabeça, cantarolar uma música ainda sem letra.
Deixe varrerem seus pés, case sem namorar, namore sem casar.
Seja imprudente porque, quando se anda em linha reta, não há histórias para contar.
Leve uma árvore para passear.
Chore nos filmes babacas, durma nos filmes sérios.
Não espere as segundas intenções para chegar às primeiras.
Não diga “eu sei, eu sei”, quando nem ouviu direito.
Almoce sozinha para sentir saudades do que não foi servido em sua vida.
Ligue sem motivo para o amigo, leia o livro sem procurar coerência, ame sem pedir contrato, esqueça de ser o que os outros esperam para ser os outros em você.
Transforme o sapato em um barco, ponha o na água com a sua foto dentro.
Não arrume a casa na segunda feira.
Não sofra com o fim do domingo.
Alterne a respiração com um beijo.
Volte tarde.
Dispense o casaco para se gripar.
Solte palavrão para valorizar depois cada palavra de afeto.
Complique o que é muito simples.
Conte uma piada sem rir antes.
Não chore para chantagear.
Cometa bobagens.
Ninguém lembra do que foi normal.
Que as suas lembranças não sejam o que ficou por dizer.
É preferível a coragem da mentira à covardia da verdade.

DEPOIS DE MUITO AMOR
A mulher somente despreza quem ela amou demais.
Não é qualquer homem que merece, não é qualquer pessoa.
Pede uma longa história de convivência, tentativas e vindas, mutilações e desculpas.
O desprezo surge após longo desespero.
É quando o desespero cansa, quando a dúvida não reabre mais a ferida.
É possível desprezar pai e mãe, ex esposa ou ex marido, daquele que se esperava tanto.
Não se pode sentir desprezo por um desconhecido, por um colega de trabalho, por um amigo recente.
O desprezo demora toda a vida, é outra vida.
É nossa incrível capacidade de transformar o ente familiar num sujeito anônimo.
Assim que se torna desprezo, é irreversível, não é uma opinião que se troca, um princípio que se aperfeiçoa.
Incorpora se ao nosso caráter.
Desprezo não recebe promoção, não decresce com o tempo.
Não existe como convencer seu portador a largá lo.
Não é algo que dominamos, tampouco gera orgulho, nunca será um troféu que se põe na estante.
Desprezo é uma casa que não será novamente habitada.
Uma casa em inventário.
Uma casa que ocupa um espaço, mas não conta.
É a medida do que não foi feito, uma régua do deserto.
A saudade mede a falta.
O desprezo mede a ausência.
O desprezo não costuma acontecer na adolescência, fase em que nada realmente acaba e toda vela de aniversário ainda teima em acender.
É reservado aos adultos, desconfio que deflagre a velhice; vem de um amor abandonado.
Trata se de um mergulho corajoso ao pântano de si, desaconselhável aos corações doces e puros, representa a mais aterrorizante e ameaçadora experiência.
Indica uma intimidade perdida, solitária, uma intimidade que se soltou da raiz do voo.
O desprezo é um ódio morto.
É quando o ódio não é mais correspondido.
Não significa que se aceitou o passado, que se tolera o futuro; é uma desistência.
Uma espécie de serenidade da indiferença.
Não desencadeia retaliação, não se tem mais vontade de reclamar, não se tem mais gana para ofender.
Supera a ideia de fim, é a abolição do início.
Não desejaria isso para nenhum homem.
O desprezado é mais do que um fantasma.
Não é que morreu, sequer nasceu; seu nascimento foi anulado, ele deixa de existir.
O desprezo é um amor além do amor, muito além do amor.
Não há como voltar dele.
(Zero Hora)