DEPOIS DE MUITO AMOR
A mulher somente despreza quem ela amou demais.
Não é qualquer homem que merece, não é qualquer pessoa.
Pede uma longa história de convivência, tentativas e vindas, mutilações e desculpas.
O desprezo surge após longo desespero.
É quando o desespero cansa, quando a dúvida não reabre mais a ferida.
É possível desprezar pai e mãe, ex esposa ou ex marido, daquele que se esperava tanto.
Não se pode sentir desprezo por um desconhecido, por um colega de trabalho, por um amigo recente.
O desprezo demora toda a vida, é outra vida.
É nossa incrível capacidade de transformar o ente familiar num sujeito anônimo.
Assim que se torna desprezo, é irreversível, não é uma opinião que se troca, um princípio que se aperfeiçoa.
Incorpora se ao nosso caráter.
Desprezo não recebe promoção, não decresce com o tempo.
Não existe como convencer seu portador a largá lo.
Não é algo que dominamos, tampouco gera orgulho, nunca será um troféu que se põe na estante.
Desprezo é uma casa que não será novamente habitada.
Uma casa em inventário.
Uma casa que ocupa um espaço, mas não conta.
É a medida do que não foi feito, uma régua do deserto.
A saudade mede a falta.
O desprezo mede a ausência.
O desprezo não costuma acontecer na adolescência, fase em que nada realmente acaba e toda vela de aniversário ainda teima em acender.
É reservado aos adultos, desconfio que deflagre a velhice; vem de um amor abandonado.
Trata se de um mergulho corajoso ao pântano de si, desaconselhável aos corações doces e puros, representa a mais aterrorizante e ameaçadora experiência.
Indica uma intimidade perdida, solitária, uma intimidade que se soltou da raiz do voo.
O desprezo é um ódio morto.
É quando o ódio não é mais correspondido.
Não significa que se aceitou o passado, que se tolera o futuro; é uma desistência.
Uma espécie de serenidade da indiferença.
Não desencadeia retaliação, não se tem mais vontade de reclamar, não se tem mais gana para ofender.
Supera a ideia de fim, é a abolição do início.
Não desejaria isso para nenhum homem.
O desprezado é mais do que um fantasma.
Não é que morreu, sequer nasceu; seu nascimento foi anulado, ele deixa de existir.
O desprezo é um amor além do amor, muito além do amor.
Não há como voltar dele.
(Zero Hora)