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Álvares de Azevedo

SONHANDO
Na praia deserta que a lua branqueia
Que mimo! Que rosa, que filha de Deus!
Tão pálida ao vê la meu ser devaneia,
Sufoco nos lábios os hálitos meus!
Não corras na areia,
Não corras assim!
Donzela, onde vais
Tem pena de mim!
A praia é tão longe! E a onda bravia
As roupas de goza te molha de escuma
De noite aos serenos a areia é tão fria,
Tão úmido o vento que os ares perfuma!
És tão doentia!
Não corras assim!
Donzela, onde vais
Tem pena de mim!
A brisa teus negros cabelos soltou,
O orvalho da face te esfria o suor;
Teus seios palpitam a brisa os roçou,
Beijou os, suspira, desmaia de amor!
Teu pé tropeçou
Não corras assim!
Donzela, onde vais
Tem pena de mim!
E o pálido mimo da minha paixão
Num longo soluço tremeu e parou,
Sentou se na praia, sozinha no chão,
A mão regelada no colo pousou!
Que tens, coração
Que tremes assim
Cansaste, donzela
Tem pena de mim!
Deitou se na areia que a vaga molhou.
Imóvel e branca na praia dormia;
Mas nem os seus olhos o sono fechou
E nem o seu colo de neve tremia
O seio gelou
Não durmas assim!
Ó pálida fria,
Tem pena de mim!
Dormia: na fronte que níveo suar
Que mão regelada no lânguido peito
Não era mais alvo seu leito do mar,
Não era mais frio seu gélido leito!
Nem um ressonar
Não durmas assim
Ó pálida fria,
Tem pena de mim!
Aqui no meu peito vem antes sonhar
Nos longos suspiros do meu coração:
Eu quero em meus lábios teu seio aquentar,
Teu colo, essas faces, e a gélida mão
Não durmas no mar!
Não durmas assim.
Estátua sem vida,
Tem pena de mim!
E a vaga crescia seu corpo banhando,
As cândidas formas movendo de leve!
E eu vi a suave nas águas boiando
Com soltos cabelos nas roupas de neve!
Nas vagas sonhando
Não durmas assim
Donzela, onde vais
Tem pena de mim!
E a imagem da virgem nas águas do mar
Brilhava tão branca no límpido véu
Nem mais transparente luzia o luar
No ambiente sem nuvens da noite do céu!
Nas águas do mar
Não durmas assim
Não morras, donzela,
Espera por mim!

LEMBRANÇAS DE MORRER
Quando em meu peito rebentar se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nenhuma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento.
Eu deixo a vida como deixa o tédio
Do deserto, o poento caminheiro,
– Como as horas de um longo pesadelo
Que se desfaz ao dobre de um sineiro;
Como o desterro de minh’alma errante,
Onde fogo insensato a consumia:
Só levo uma saudade – é desses tempos
Que amorosa ilusão embelecia.
Só levo uma saudade – é dessas sombras
Que eu sentia velar nas noites minhas
De ti, ó minha mãe, pobre coitada,
Que por minha tristeza te definhas!
De meu pai de meus únicos amigos,
Pouco bem poucos – e que não zombavam
Quando, em noites de febre endoudecido,
Minhas pálidas crenças duvidavam.
Se uma lágrima as pálpebras me inunda,
Se um suspiro nos seios treme ainda,
É pela virgem que sonhei que nunca
Aos lábios me encostou a face linda!
Só tu à mocidade sonhadora
Do pálido poeta deste flores
Se viveu, foi por ti! e de esperança
De na vida gozar de teus amores.
Beijarei a verdade santa e nua,
Verei cristalizar se o sonho amigo
Ó minha virgem dos errantes sonhos,
Filha do céu, eu vou amar contigo!
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela:
Foi poeta sonhou e amou na vida.
Sombras do vale, noites da montanha
Que minha alma cantou e amava tanto,
Protegei o meu corpo abandonado,
E no silêncio derramai lhe canto!
Mas quando preludia ave d’aurora
E quando à meia noite o céu repousa,
Arvoredos do bosque, abri os ramos
Deixai a lua pratear me a lousa!

VIRGEM MORTA
Lá bem na extrema da floresta virgem,
Onde na praia em flor o mar suspira
Lá onde geme a brisa do crepúsculo
E mais poesia o arrebol transpira
Nas horas em que a tarde moribunda
As nuvens roxas desmaiando corta,
No leito mole da molhada areia
Deitem o corpo da beleza morta.
Irmã chorosa a suspirar desfolhe
No seu dormir da laranjeira as flores,
Vistam na de cetim, e o véu de noiva
Lhe desdobrem da face nos palores.
Vagueie em torno, de saudosas virgens
Errando à noite, a lamentosa turma
E, entre cânticos de amor e de saudade,
Junto às ondas do mar a virgem durma.
Às brisas da saudade soluçantes
Aí, em tarde misteriosa e bela,
Entregarei as cordas do alaúde
E irei meus sonhos prantear por ela!
Quero eu mesmo de rosa o leito encher lhe
E de amorosos prantos perfumá la
E a essência dos cânticos divinos
No túmulo da virgem derramá la.
Que importa que ela durma descorada
E velasse o palor a cor do pejo
Quero a delícia que o amor sonhava
Nos lábios dela pressentir num beijo.
Desbotada coroa do poeta!
Foi ela mesma quem prendeu te flores!
Ungiu as no sacrário de seu peito
Inda virgem do alento dos amores!
Na minha fronte riu de ti, passando,
Dos sepulcros o vento peregrino
Irei eu mesmo desfolhar te agora
Da fronte dela no palor divino!
E contudo eu sonhava! e pressuroso
Da esperança o licor sorvi sedento!
Ai! que tudo passou! só resta agora
O sorriso de um anjo macilento!
Ó minha amante, minha doce virgem,
Eu não te profanei, tu dormes pura:
No sono do mistério, qual na vida,
Podes sonhar ainda na ventura.
Bem cedo, ao menos, eu serei contigo
Na dor do coração a morte leio
Poderei amanhã, talvez, meus lábios
Da irmã dos anjos encostar no seio
E tu, vida que amei! pelos teus vales
Com ela sonharei eternamente
Nas noites junto ao mar e no silêncio,
Que das notas enchi da lira ardente!
Dorme ali minha paz, minha esperança,
Minha sina de amor morreu com ela,
E o gênio do poeta, lira eólia
Que tremia ao alento da donzela!
Qu’esperanças, meu Deus! E o mundo agora
Se inunda em tanto sol no céu da tarde!
Acorda, coração! Mas no meu peito
Lábio de morte murmurou: É tarde!
É tarde! e quando o peito estremecia
Sentir me abandonado e moribundo!
É tarde! é tarde! ó ilusões da vida,
Morreu com ela da esperança o mundo!
No leito virginal de minha noiva
Quero, nas sombras do verão da vida,
Prantear os meus únicos amores,
Das minhas noites a visão perdida
Quero ali, ao luar, sentir passando
Por alta noite a viração marinha,
E ouvir, bem junto às flores do sepulcro,
Os sonhos de su’alma inocentinha.
E quando a mágoa devorar meu peito
E quando eu morra de esperar por ela
Deixai que eu durma ali e que descanse,
Na morte ao menos, sobre o seio dela!