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Textos Grandes

Super gaúcha
Sou urbana, gosto de cidade grande, não gosto de mato, de bicho e de pão feito em casa.
Pronto.
Falei.
Acredite: não é um desvio de caráter.
É o meu jeito.
Minhas preferências.
Não jogue no lixo tudo o que a gente construiu juntos só por causa deste detalhezinho bobo.
Desde que eu era pequena que sítios, fazendas e assemelhados nunca me seduziram.
Tenho medo de cobra, não sei andar a cavalo e suo frio só em pensar em encontrar uma perereca no banheiro.
Eu bem que gostaria de me adaptar, pois se todo mundo diz que não há nada melhor do que a vida no campo, alguma verdade há nisso.
Eu gosto de árvores, de flores, de silêncio, eu fiz minhas tentativas.
Eu tentei ser normal.
Achei que bastaria calçar botas de couro, mas é pouco.
É preciso vocação.
Minha inaptidão para o mundo campeiro fica bem demonstrada quando o assunto é gastronomia.
Eu não gosto de charque.
Eu não gosto de chimarrão.
Eu não gosto de doce de abóbora.
Eu não gosto de leite recém tirado da vaca.
Restou me a resignação: vim ao mundo com este defeito de fábrica e não há nada que se possa fazer.
Todas as pessoas possuem uma espécie de deficiência, e algumas são bem piores do que as minhas.
Há quem seja vegetariano.
Não cheguei a esse extremo.
Uma picanha, não recuso.
Mal passada, melhor ainda.
Estamos vivendo uma fase de ufanismo gaudério.
De repente, o Rio Grande do Sul ganhou destaque, devido à minissérie e ao livro A Casa das Sete Mulheres, da minha talentosa amiga Leticia Wierzchovski.
Toda a população está se sentindo orgulhosa de pertencer a esta terra.
Uma rede de lojas, recentemente, colocou uma campanha publicitária no ar com a seguinte pergunta: o que é ser gaúcho As melhores respostas ganharam prêmios.
Eu não ganharia nem um tapinha nas costas.
Ser gaúcha, eu responderia, é gostar de ler Michael Cunningham, de ir ao cinema, de viajar para o Rio, para Punta, para Nova York.
É caminhar na esteira de uma academia, trabalhar até tarde num escritório e antes de voltar pra casa passar no Zaffari e comprar uma pizza congelada.
Ser gaúcha é ouvir bossa nova, gostar de praia e ficar só de camiseta e meias comendo Ruffles na frente da tevê.
É preocupar se com a meteorologia porque amanhã é dia de fazer escova e você morre de medo que chova e o cabelo vá por água abaixo.
É acordar com as galinhas, mas sem ver as galinhas, a não ser na hora do almoço, grelhadas.
Ser gaúcha é ter bom humor e nojo de barata, é adorar a Internet e assistir ao pôr do sol da sacada.
Ser gaúcha é ter nascido aqui mas ser feliz em qualquer lugar, com o estilo de vida que escolher.
Eu me sinto tão gaúcha quanto as prendas que dançam nos CTGs, tão gaúcha quanto as mulheres que encilham cavalos, que cozinham em fogões a lenha, que ordenham vacas e bordam tapetes.
Aliás, eu bordo tapetes.
Aliás, eu nasci neste Estado.
Aliás, somos todos gaúchos, nenhum mais gaúcho que o outro.

Grandes são os desertos
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto
Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.
Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes
Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,
Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.
Grandes são os desertos, minha alma!
Grandes são os desertos.
Não tirei bilhete para a vida,
Errei a porta do sentimento,
Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.
Hoje não me resta, em vésperas de viagem,
Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,
Sentado na cadeira em companhia com as camisas que não cabem,
Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim sentado)
Senão saber isto:
Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida,
Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em arrumar
Que com arrumação das mãos factícias (e creio que digo bem)
Acendo o cigarro para adiar a viagem,
Para adiar todas as viagens.
Para adiar o universo inteiro.
Volta amanhã, realidade!
Basta por hoje, gentes!
Adia te, presente absoluto!
Mais vale não ser que ser assim.
Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,
E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.
Mas tenho que arrumar mala,
Tenho por força que arrumar a mala,
A mala.
Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão.
Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.
Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre o canto das camisas empilhadas,
A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.
Tenho que arrumar a mala de ser.
Tenho que existir a arrumar malas.
A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.
Olho para o lado, verifico que estou a dormir.
Sei só que tenho que arrumar a mala,
E que os desertos são grandes e tudo é deserto,
E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já me esqueci.
Ergo me de repente todos os Césares.
Vou definitivamente arrumar a mala.
Arre, hei de arrumá la e fechá la;
Hei de vê la levar de aqui,
Hei de existir independentemente dela.
Grandes são os desertos e tudo é deserto,
Salvo erro, naturalmente.
Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!
Mais vale arrumar a mala.
Fim.