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Mensagens de Martha Medeiros

Festa no outro apartamento
Anos atrás a cantora Marina compôs com o irmão dela, o poeta Antônio Cícero, uma música que dizia: "eu espero/acontecimentos/só que quando anoitece/é festa no outro apartamento".
Passei minha adolescência inteira com esta sensação: a de que algo muito animado estava acontecendo em algum lugar, porém eu não havia sido convidada.
Até aí, nada de novo.
Não há um único ser humano que já não tenha se sentido deslocado e impedido de ser feliz como os outros são ou aparentam ser.
O problema está em como a gente reage a isso.
A grande maioria que espera "acontecimentos" fica ligada demais na festa do vizinho, se perguntando: como fazer para ser percebido A resposta deveria ser: percebendo se a si mesmo.
Mas é o contrário que acontece: a gente passa a se vestir como todo mundo, falar como todo mundo, pensar como todo mundo.
Só então consegue passe livre: ok, agora você é um dos nossos, a casa é sua.
As festas em outros apartamentos são fruto da nossa imaginação tão infectada por falsos holofotes, falsos sorrisos e falsas notícias de jornal.
As pessoas alardeiam muito suas vitórias, mas falam pouco das suas angústias, revelam pouco suas aflições, não dão bandeira das suas fraquezas, então fica parecendo que todos estão comemorando grandes paixões e fortunas, quando na verdade a festa lá fora não está tão animada assim.
É preciso amadurecer para descobrir que a grama do vizinho não é mais verde coisíssima nenhuma.
Estamos todos no mesmo barco, com motivos pra dançar pela sala e também motivos pra se refugiar no escuro, alternadamente.
Só que os motivos pra se refugiar no escuro não costumam ser revelados.
Pra consumo externo, todos são belos, lúcidos, íntegros, perfeitos.
"Nunca conheci quem tivesse levado porrada/todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo".
Fernando Pessoa sacando que nada é o que parece ser.
Sua solidão, sua busca por paz interior, seus poucos e leais amigos, seus livros, suas músicas, fantasias, de desilusões e recomeços, tudo isso vale ser incluído na sua biografia, e pode ser mais divertido que uma balada em algum lugar distante.
Pegar carona na alegria dos outros é preguiça, e quase sempre é furada.
Quer festa Promova a dentro do seu apartamento.

Caça
Por que é importante ler Pergunta recorrente em qualquer encontro de escritores com estudantes.
E a gente acaba desfiando um rosário de respostas prontas, um blá blá blá repetitivo, apesar de necessário.
Mas hoje vou dar um exemplo prático.
Estava lendo uma revista nem era um livro quando me deparei com uma entrevista feita com o chef Philippe Legendre, estrela da gastronomia francesa de quem nunca provei um ovo frito.
Ignorante sobre quem era o cara, li.
Lá pelas tantas, o repórter: "É verdade que o senhor adora caçar " O chef: "Eu caço o silêncio.
Atiro no barulho."
Bum!
Perdizes, faisões, coelhos, sei lá o quê o tal homem caça todo final de semana e nem me interessa.
O importante foi o impacto causado por aquelas duas frasezinhas curtas que pareciam um poema e que empurraram meu pensamento para além daquelas páginas, me puseram a pensar sobre minhas próprias perseguições.
Caço o silêncio.
Atiro no barulho.
Eu idem, monsieur.
Eu caço o sossego.
Atiro na tevê.
Eu caço afeto.
Atiro em gente rude.
Eu caço liberdade.
Atiro na patrulha.
Eu caço amigos.
Atiro em fantasmas.
Eu caço o amanhã.
Atiro no ontem.
Eu caço prazeres.
Atiro no tédio.
Eu caço o sono.
Atiro no sol.
E quando caço o sol, atiro em relógios.
Acho que é isto que a leitura faz.
Nos solta na floresta com uma arma na mão.
Nos dá munição para atirar em tudo o que nos distrai de nós mesmos, no que nos desconcentra.
O livro não permite que fiquemos sem nos escutar.
A leitura faz eu mirar em mim e acertar no que eu nem sabia que também sentia e pensava.
E, por outro lado, me ajuda a matar tudo o que pode haver em mim de limitante: preconceitos, idéias fixas, hipocrisias, solenidades, dores cultuadas.
Lendo, eu caço a mim e atiro em mim.

LIBERDADE E CONTROLE
Eu não sei você, mas eu faço o tipo controladora, gosto de estar na regência de tudo o que me cerca, vivo a ilusão de que sem mim as coisas não irão funcionar, me sinto necessária, e isso me agrada e ao mesmo tempo me angustia, gostaria de ser mais relaxada e mais resignada diante da minha falta de controle absoluta: pois é, a gente pensa que tem controle sobre tudo, mas não temos controle sobre nada.
Se você curte se auto investigar, bem vindo ao clube.
Passei horas, outro dia, conversando com um amigo sobre este instigante assunto: temos ou não temos controle sobre nossas vidas Minha tendência é acreditar que há um controle ao menos parcial.
Senão vejamos: eu tenho o poder de fazer escolhas.
Posso dizer sim ou não, ir para a esquerda ou para a direita.
Posso me separar, continuar casada, ter mais um filho, posso mudar a cor do cabelo, posso abandonar o emprego, passar dois meses sozinha numa ilha ou me internar num convento.
O que me impede
Você mesma se impede, responde ele.
Tem razão, o problema é que não somos livres.
Eu, ao menos, não acredito em liberdade enquanto houver dependências afetivas.
Para ser livres, precisaríamos não manter nenhuma espécie de laço com ninguém, o que é impensável: abrir mão de pai, mãe, irmãos, filhos, amigos, um amor.
É um preço alto demais para pagar pelo ir e vir.
Estou de acordo com um psicanalista que disse que o máximo de liberdade que podemos almejar é escolher a prisão em que queremos viver.
Eu escolhi a adorável prisão dos afetos.
Meu amigo considera interessante essa história de escolhermos nossas prisões, mas diz que isso só prova que somos 100% livres.
Poderíamos escolher prisão nenhuma, mas nos é intolerável a idéia de viver soltos.
Então vamos construindo nossas cercas: uma mãe doente a quem não podemos decepcionar, uma esposa que iria se suicidar se a deixássemos, filhos que iriam ficar traumatizados com nosso divórcio, um emprego ótimo que seria loucura abandonar, enfim, vamos inventando empecilhos para não sair da jaula.
A liberdade é desestabilizadora, e queremos tudo, menos a subversão.
Pergunto: que mal há em sermos corretos, em agirmos com decência e discernimento, em não frustrar as expectativas que depositaram em nós
Mal nenhum, responde meu amigo.
É até muito nobre, diga se.
Mas quem inventou as definições de correção e decência E quanto às suas próprias frustrações, são menos importantes do que as que os outros têm em relação a você
Pois é, de vez em quando entro em uns debates insanos sobre liberdade e controle, e onde chego com tudo isso A um papo excitante, o que já é muito.
Pensar é um ensaio de liberdade.
Que poucos se atrevem, aliás.
É o que por hora me permito enquanto eu não for na prática e às ganhas totalmente livre.