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Mensagens de Martha Medeiros

Trancar o dedo numa porta dói.
Bater com o queixo no chão dói.
Torcer o tornozelo dói.
Um tapa, um soco, um pontapé, doem.
Dói bater a cabeça na quina da mesa, dói morder a língua,
dói cólica, cárie e pedra no rim.
Mas o que mais dói é a saudade.
Saudade de um irmão que mora longe.
Saudade de uma cachoeira da infância.
Saudade de um filho que estuda fora.
Saudade do gosto de uma fruta que não se encontra mais.
Saudade do pai que morreu, do amigo imaginário que nunca existiu.
Saudade de uma cidade.
Saudade da gente mesmo, que o tempo não perdoa.
Doem essas saudades todas.
Mas a saudade mais dolorida é a saudade de quem se ama.
Saudade da pele, do cheiro, dos beijos.
Saudade da presença, e até da ausência consentida.
Você podia ficar na sala e ela no quarto, sem se verem, mas sabiam se lá.
Você podia ir para o dentista e ela para a faculdade, mas sabiam se onde.
Você podia ficar o dia sem vê la, ela o dia sem vê lo, mas sabiam se amanhã.
Contudo, quando o amor de um acaba, ou torna se menor,
Ou quando alguém ou algo não deixa que esse amor siga,
Ao outro sobra uma saudade que ninguém sabe como deter.
Saudade é basicamente não saber.
Não saber mais se ela continua fungando num ambiente mais frio.
Não saber se ele continua sem fazer a barba por causa daquela alergia.
Não saber se ela ainda usa aquela saia.
Não saber se ele foi na consulta com o dermatologista como prometeu.
Não saber se ela tem comido bem por causa daquela mania
de estar sempre ocupada;
se ele tem assistido às aulas de inglês,
se aprendeu a entrar na Internet
e encontrar a página do Diário Oficial;
se ela aprendeu a estacionar entre dois carros;
se ele continua preferindo Malzebier;
se ela continua preferindo suco;
se ele continua sorrindo com aqueles olhinhos apertados;
se ela continua dançando daquele jeitinho enlouquecedor;
se ele continua cantando tão bem;
se ela continua detestando o MC Donald's;
se ele continua amando;
se ela continua a chorar até nas comédias.
Saudade é não saber mesmo!
Não saber o que fazer com os dias que ficaram mais compridos;
não saber como encontrar tarefas que lhe cessem o pensamento;
não saber como frear as lágrimas diante de uma música;
não saber como vencer a dor de um silêncio que nada preenche.
Saudade é não querer saber se ela está com outro, e ao mesmo tempo querer.
É não saber se ele está feliz, e ao mesmo tempo perguntar a todos os amigos por isso
É não querer saber se ele está mais magro, se ela está mais bela.
Saudade é nunca mais saber de quem se ama, e ainda assim doer;
Saudade é isso que senti enquanto estive escrevendo e o que você,
provavelmente, está sentindo agora depois que acabou de ler

A maioria das pessoas, quando são questionadas sobre o assunto, dizem: "Não existe felicidade, existem apenas momentos felizes".
É o que eu pensava quando habitava a caverna dos 17 anos, para onde não voltaria nem puxada pelos cabelos.
Era angústia, solidão, impasses e incertezas pra tudo quanto era lado, minimizados por um garden party de vez em quando, um campeonato de tênis, um feriadão em Garopaba.
Os tais momentos felizes.
Adolescente é buzinado dia e noite: tem que estudar para o vestibular, aprender inglês, usar camisinha, dizer não às drogas, não beber quando dirigir, dar satisfação aos pais, ler livros que não quer e administrar dezenas de paixões fulminantes e rompimentos.
Não tem grana para ter o próprio canto, costuma deprimir se de segunda a sexta e só se diverte aos sábados, em locais onde sempre tem fila.
É o apocalipse.
Felicidade, onde está você Aqui, na casa dos 30 e sua vizinhança.
Está certo que surgem umas ruguinhas, umas mechas brancas e a barriga salienta se, mas é um preço justo para o que se ganha em troca.
Pense bem: depois dos 30, você paga do próprio bolso o que come e o que veste.
Vira se no inglês, no francês, no italiano e no iídiche, e ai de quem rir do seu sotaque.
Não tenta mais o suicídio quando um amor não dá certo, enjoou do cheiro da maconha, apaixonou se por literatura, trocou sua mochila por uma Samsonite e não precisa da autorização de ninguém para assistir ao canal da Playboy.
Talvez não tenha se tornado o bam bam bam que sonhou um dia, mas reconhece o rosto que vê no espelho, sabe de quem se trata e simpatiza com o cara.
Depois que cumprimos as missões impostas no berço ter uma profissão, casar e procriar passamos a ser livres, a escrever nossa própria história, a valorizar nossas qualidades e ter um certo carinho por nossos defeitos.
Somos os titulares de nossas decisões.
A juventude faz bem para a pele, mas nunca salvou ninguém de ser careta.
A maturidade, sim, permite uma certa loucura.
Depois dos 35, conforme descobriram os participantes daquele congresso curioso, estamos mais aptos a dizer que infelicidade não existe, o que existe são momentos infelizes.
Sai bem mais em conta.

O HOMÃO
Alguns anos atrás, escrevi um texto chamado O Mulherão para o Dia Internacional da Mulher.
Fez um razoável sucesso, tanto que até hoje esse texto é lido e publicado em diversos veículos de comunicação quando chega março.
Pois cá estamos, novamente, na vizinhança desta data comemorativa, e desta vez minha homenagem vai para o homão, aquele que não tem dia algum no calendário para valorizar seus esforços.
Homão é aquele que tem assistido a ascensão feminina nas empresas, na política, na arte, no esporte e tem achado tudo mais do que justo.
Nunca li um artigo de um homem reclamando por as mulheres estarem dominando o mundo (não acredito que escrevi isso! ).
Ao contrário: os inteligentes (e todo homão é inteligente) estão tendo muito prazer em compartilhar seus gabinetes conosco e não choram pelos cantos caso tenham uma chefe mulher (homão chora, mas chora por amor, não por motivos toscos).
Homão gosta de mulher.
Parece óbvio, mas há muitos homens (não homões) que só gostam de mulher para cama, mesa e banho.
O homão gosta de mulher para cama, mesa, banho, escritório, livraria, cinema, restaurante, sala de parto, beira de praia, estrada, museu, palco, estádio.
E, às vezes, pode nem gostar delas pra cama, mesa e banho, e ainda assim continuar um homão.
Homão é aquele que encara parque no final de semana, faz um jantar delicioso, dá conselho, pede conselho, trabalha até tarde da noite, compensa no outro dia buscando os filhos na escola, dirige o carro, em outras vezes é co piloto, não acha ruim ela ganhar mais do que ele, não acha nada ruim quando ela propõe uma noitada das arábias, recebe amor, dá amor, é bom de contabilidade e sabe direitinho o que significa fifty fifty.
Homão é aquele que compreende que TPM não é frescura e que reconhece que filhos geralmente sobrecarregam mais as mães do que os pais, então eles correm atrás do prejuízo, aliviando nossa carga com prazer.
Homão acha um porre discutir a relação, mas discute.
Homão não concorda com tudo o que a gente diz e faz, senão não seria um homão, e sim um panaca, mas escuta, argumenta e acrescenta idéias novas.
Homão não fica dizendo que no tempo do pai dele é que era bom, o pai mandava e a mãe obedecia.
Homão reconhece as vantagens de estar interagindo com seres do mesmo calibre e não depende de uma arma ou de um carro ultrapotente para provar que é um homão.
O homão sabe que não há nada como ter uma grande mulher a seu lado.

Você planeja terminar um relacionamento.
Chegou à conclusão que não quer mais ter a seu lado uma pessoa distante, que não leva nada à sério, que vive contando piadinhas preconceituosas e que não parece estar muito apaixonado.
Por que levar a história adiante Melhor terminar tudo hoje mesmo.
Marca um encontro.
Ele chega no horário, você também.
Começam a conversar.
Você engata o assunto.
Para sua surpresa, ele ficou triste.
Não quer se separar de você.
E para provar, segura seu rosto com as duas mãos e tasca lhe um beijo.
Danou se.
Onde foram parar as teorias, os diálogos que você planejou, a decisão que parecia irrevogável Tomaram Doril.
Você agora está sob os efeitos do cheiro dele, está rendida ao gosto dele, está ligada a ele pela derme e epiderme.
A gravação do seu celular informa: seus neurônios estão fora da área de cobertura ou desligados.
Isso nunca aconteceu com você Reluto entre dar lhe os parabéns ou os pêsames.
Por um lado, é ótimo ter controle absoluto de todas as suas ações e reações, ter força suficiente para resistir ao próprio desejo.
Por outro lado, como é bom dar folga ao nosso raciocínio e deixar se seduzir, sem ficar calculando perdas e danos, apenas dando se ao luxo de viver o seu dia de Pigmaleão.
A carne é fraca, mas você tem que ser forte, é o que recomendam todos.
Tente, ao menos de vez em quando, ser não ceder às tentações.
Se conseguir, bravo: terá as rédeas de seu destino na mão.
Mas se não der certo, console se.
Criaturas que derretem se, entregam se, consomem se e não sabem negar se costumam trazer um sorriso enigmático nos lábios.
Alguma recompensa há de ter.

O Tamanho das Pessoas
Os Tamanhos variam conforme o grau de envolvimento
Uma pessoa é enorme para ti, quando fala do que leu e viveu, quando te trata com carinho e respeito, quando te olha nos olhos e sorri .
É pequena para ti quando só pensa em si mesma, quando se comporta de uma maneira pouco gentil, quando fracassa justamente no momento em que teria que demonstrar o que há de mais importante entre duas pessoas: a amizade, o carinho, o respeito, o zelo e até mesmo o amor
Uma pessoa é gigante para ti quando se interessa pela tua vida, quando procura alternativas para o seu crescimento, quando sonha junto contigo.
E pequena quando se desvia do assunto.
Uma pessoa é grande quando perdoa, quando compreende, quando se coloca no lugar do outro, quando age não de acordo com o que esperam dela, mas de acordo com o que espera de si mesma.
Uma pessoa é pequena quando se deixa reger por comportamentos da moda.
Uma mesma pessoa pode aparentar grandeza ou miudeza dentro de um relacionamento, pode crescer ou decrescer num espaço de poucas semanas.
Uma decepção pode diminuir o tamanho de um amor que parecia ser grande.
Uma ausência pode aumentar o tamanho de um amor que parecia ser ínfimo.
É difícil conviver com esta elasticidade: as pessoas se agigantam e se encolhem aos nossos olhos.
O nosso julgamento é feito não através de centímetros e metros, mas de ações e reações, de expectativas e frustrações.
Uma pessoa é única ao estender a mão, e ao recolhê la inesperadamente torna se mais uma.
O egoísmo unifica os insignificantes.
Não é a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande é a sua sensibilidade, sem tamanho

Avec Elegance
Hoje a maioria das pessoas que têm acesso à informação sabe que é peruíce usar uma blusa de paetês às duas da tarde e que é deselegante comparecer a um casamento sem gravata.
Costanza Pascolato, Gloria Kalil e Claudia Matarazzo são alguns dos jornalistas especializados em ajudar os outros a não cometerem gafes na hora de se vestir ou de se portar à mesa.
Mas existe uma coisa difícil de ser ensinada e que, talvez por isso, esteja cada vez mais rara: a elegância do comportamento.
É um dom que vai muito além do uso correto dos talheres e que abrange bem mais do que dizer um simples obrigado diante de uma gentileza.
É a elegância que nos acompanha da primeira hora da manhã até a hora de dormir e que se manifesta nas situações mais prosaicas, quando não há festa alguma nem fotógrafos por perto.
É uma elegância desobrigada.
É possível detectá la nas pessoas que elogiam mais do que criticam.
Nas pessoas que escutam mais do que falam.
E quando falam, passam longe da fofoca, das pequenas maldades ampliadas no boca a boca.
É possível detectá la nas pessoas que não usam um tom superior de voz ao se dirigir à empregadas domésticas, garçons ou frentistas.
Nas pessoas que evitam assuntos constrangedores porque não sentem prazer em humilhar os outros.
É possível detectá la em pessoas pontuais.
Elegante é quem demonstra interesse por assuntos que desconhece, é quem dá um presente sem data de aniversário por perto, é quem cumpre o que promete e, ao receber uma ligação, não recomenda à secretária que pergunte antes quem está falando e só depois manda dizer se está ou não está.
Oferecer flores é sempre elegante.
É elegante não ficar espaçoso demais.
É elegante não mudar seu estilo apenas para se adaptar ao de outro.
É muito elegante não falar de dinheiro em bate papos informais.
É elegante retribuir carinho e solidariedade.
Sobrenome, jóias e nariz empinado não substituem a elegância do gesto.
Não há livro que ensine alguém a ter uma visão generosa do mundo, a estar nele de uma forma não arrogante.
Pode se tentar capturar esta delicadeza natural através da observação, mas tentar imitá la é improdutivo.
A saída é desenvolver em si mesmo a arte de conviver, que independe de status social: é só pedir licencinha para o nosso lado brucutu, que acha que “com amigo não tem que ter estas frescuras”.
Se os amigos não merecem uma certa cordialidade, os inimigos é que não irão um dia desfrutá la.
Educação enferruja por falta de uso.
E, detalhe: não é frescura.

Um Deus que sorri
Eu acredito em Deus.
Mas não sei se o Deus em que eu acredito é o mesmo Deus em que acredita o balconista, a professora, o porteiro.
O Deus em que acredito não foi globalizado.
O Deus com quem converso não é uma pessoa, não é pai de ninguém.
É uma idéia, uma energia, uma eminência.
Não tem rosto, portanto não tem barba.
Não caminha, portanto não carrega um cajado.
Não está cansado, portanto não tem trono.
O Deus que me acompanha não é bíblico.
Jamais se deixaria resumir por dez mandamentos, algumas parábolas e um pensamento que não se renova.
O meu Deus é tão superior quanto o Deus dos outros, mas sua superioridade está na compreensão das diferenças, na aceitação das fraquezas e no estímulo à felicidade.
O Deus em que acredito me ensina a guerrear conforme as armas que tenho e detecta em mim a honestidade dos atos.
Não distribui culpas a granel: as minhas são umas, as do vizinho são outras, e nossa penitência é a reflexão.
Ave Maria, Pai Nosso, isso qualquer um decora sem saber o que está dizendo.
Para o Deus em que acredito só vale o que se está sentindo.
O Deus em que acredito não condena o prazer.
Se ele não tem controle sobre enchentes e violência, se não tem controle sobre traficantes, corruptos e vigaristas, se não tem controle sobre a miséria, o câncer e as mágoas, então que Deus seria ele se ainda por cima condenasse o que nos resta: o lúdico, o sensorial, a libido que nasce com toda criança e se desenvolve livre, se assim o permitirem
O Deus em que acredito não é tão bonzinho: me castiga e me deixa uns tempos sozinha.
Não me abandona, mas me exige mais do que uma visita à igreja, uma flexão de joelhos e uma doação aos pobres: cobra caro pelos meus erros e não aceita promessas performáticas, como carregar uma cruz gigante nos ombros.
A cruz pesa onde tem que pesar: dentro.
É onde tudo acontece e tudo se resolve.
Este é o Deus que me acompanha.
Um Deus simples.
Deus que é Deus não precisa ser difícil e distante, sabe tudo e vê tudo.
Meu Deus é discreto e otimista.
Não se esconde, ao contrário, aparece principalmente nas horas boas para incentivar, para me fazer sentir o quanto vale um pequeno momento grandioso: um abraço numa amiga, uma música na hora certa, um silêncio.
É onipresente, mas não onipotente.
Meu Deus é humilde.
Não posso imaginar um Deus repressor e um Deus que não sorri.
Quem não te sorri não é cúmplice.

Se fosse feita uma enquete nas ruas com a pergunta: "Você tem a vida que pediu a Deus ", a maioria responderia com um sonoro "quá quá quá".
Lógico que alguém desempregado, doente ou que tenha sido vítima de uma tragédia pessoal não estará muito entusiasmado.
Mas mesmo os que teriam motivos para estar (aqueles que possuem emprego, saúde e alguma relação afetiva, que é considerada a tríade da felicidade) também não têm achado muita graça na vida.
O mundo é habitado por pessoas frustradas com o próprio trabalho, pessoas que não estão satisfeitas com o relacionamento que construíram, pessoas saudosas de velhos amores, pessoas que gostariam de estar morando em outro lugar, pessoas que se julgam injustiçadas pelo destino, pessoas que não agüentam mais viver com o dinheiro contado, pessoas que gostariam de ter uma vida social mais agitada, pessoas que prefeririam ter um corpo mais em forma, enfim, os exemplos se amontoam.
Se formos espiar pelo buraco da fechadura de cada um, descobriremos que estão todos relativamente bem, mas poderiam estar melhor.
Por que não estão Ora, a culpa é do governo, do papa, da sociedade, do capitalismo, da mídia, do inferno zodiacal, dos carboidratos, dos hormônios e demais bodes expiatórios dos nossos infernizantes dilemas.
A culpa é de tudo e de todos, menos nossa.
Um amigo meu, psiquiatra, costuma dizer uma frase atordoante.
Ele acredita que todas as pessoas possuem a vida que desejam.
Podem até não estar satisfeitas, mas vivem exatamente do jeito que acham que devem.
Ninguém as força a nada, nem o governo, nem o Papa, nem a mídia.
A gente tem a vida que pediu, sim.
Se ela não está boa, quem nos impede de buscar outras opções
Quase subo pelas paredes quando entro neste papo com ele porque respeito muito as fraquezas humanas.
Sei como é difícil interromper uma trajetória de anos e arriscar se no desconhecido.
Reconheço os diversos fatores família, amigos, opinião alheia que nos conduzem ao acomodamento.
Por outro lado, sei que este meu amigo está certo.
Somos os roteiristas da nossa própria história, podemos dar o final que quisermos para nossas cenas.
Mas temos que querer de verdade.
Querer pra valer.
É este o esforço que nos falta.
A mulher que diz que adoraria se separar mas não o faz por causa dos filhos, no fundo não quer se separar.
O homem que diz que adoraria ganhar a vida em outra atividade, mas já não é jovem para experimentar, no fundo não quer tentar mais nada.
É lá no fundo que estão as razões verdadeiras que levam as pessoas a mudarem ou a manterem as coisas como estão.
É lá no fundo que os desejos e as necessidades se confrontam.
Em vez de nos queixarmos, ganharíamos mais se nadássemos até lá embaixo para trazer a verdade à tona.
E então deixar de sofrer.

Tô nem aí
Tô nem aí pro futuro, pra celulite, tô nem aí para queixas datadas, tô nem aí pro telefone mudo, pros surdos, pro preço do combustível, tô nem aí se vai chover amanhã, se o presidente vai viajar, se vai voltar, tô nem aí.
Pra discussão sobre maioridade penal, violência e barbárie, tô aí.
Pro fim desta impunidade que incrementa a bestialização das nossas vidas, tô muito aí.
Tô nem aí pros especuladores da vida alheia, pro Schwarzenegger, pros índices de audiência, tô nem aí se fui convidada ou preterida, quem é a primeira da lista, a segunda, a última, tô nem aí pro novo namorado da Nicole, pras declarações da Luana, quem é gay ou não, com silicone ou sem, se é virgem, se é rodada.
Pros sentimentos das pessoas, tô aí.
Para seus desejos e dúvidas, para seus medos e ousadias, tô aí.
Para tudo aquilo que tem consistência, para tudo aquilo que nos comove, para o leve e o denso, para a alegria genuína e para o luto, tô aí, sim.
Tô nem aí para quantas calorias tem um bife, tô nem aí pra corrida espacial, se há vida após a morte, tô nem aí pro carro do ano, pra musa do próximo verão, pro gol mais bonito do domingo, pra manchete da capa de amanhã.
Para a grosseria e a falta de delicadeza que corrói as relações, tô aí.
Para a brutalidade das pessoas, pro egoísmo, pra falta de educação e civilidade, para todos que possuem uma nuvem preta acima da cabeça e a carregam pra onde quer que vão, tô aí e me dói profundamente.
Tô nem aí pro que foi decidido na reunião de condomínio, na reunião de cúpula, na reunião de mães, nas reuniões que duram mais de dez minutos, tô nem aí pro salário dos outros, pras novas tendências, pra cotação das minhas ações no mercado externo.
Tô aí pra alguns, pros meus.
Tô aí e estou aqui.
Estou atenta.
Estou dentro.
Estou me vendo.
Estou tentando.
Estou querendo.
Estou a postos só para o mínimo, o máximo.
Para o que importa mesmo.
Para o mistério.
A verdade.
O caos.
O céu.
O inferno.
Essas coisas.
No mais, tô nem aí.
Refrão e desabafo

Lúcifer e os lúcidos
"Lúcido deve ser parente de Lúcifer
a faculdade de ver deve ser coisa do demônio
lucidez custa os olhos da cara."
Estou embriagada pelos novos poemas de Viviane Mosé.
Esta é só uma palhinha de Pensamento Chão, um livro essencial nesses tempos em que já sabemos que não convém circular de Rolex por aí, já sabemos que certos políticos nunca ouviram falar em honra, já sabemos que o verão vai ser sufocante e só nos resta olhar um pouco para dentro de nós, o único lugar onde ainda encontramos alguma novidade.
Essa visão inusitada que Viviane nos oferece sobre lucidez, por exemplo, é um convite para a reflexão.
Em tempos insanos, de tanta gente maluca por vaidade, maluca por juventude, maluca por dinheiro, maluca por poder, os lúcidos destacam se pela raridade.
São aqueles que não inventam personagens de si mesmos, não se trapaceiam, não criam fantasias, ao contrário: se comprometem com a verdade.
E se envolver assim com a transparência dos fatos requer uma integridade diabólica.
Para olhar o bicho nos olhos é preciso ser bicho também.
Enfrentar a verdade é quase um ato de selvageria.
Mas que verdade é essa, afinal É aí que o demônio apresenta sua conta, pois o lúcido tem que se confrontar com uma verdade desestabilizadora: a de que não existe verdade absoluta.
Nossos pensamentos não estacionam, nossos desejos variam, o certo e o errado flertam um com o outro, não há permanência, tudo é provisório, e buscar um porto seguro é antecipar o fim: a única segurança está na morte, será ela nosso único endereço definitivo.
Durante o percurso da vida, tudo é movimento, surpresa e sorte.
O lúcido faz parte do time cada vez mais desfalcado dos que se desesperam como todo mundo, porém de um modo mais íntimo e refinado.
O lúcido organiza sua loucura, acondiciona o que está solto no ar, interliga várias idéias independentes para que, agarradas umas nas outras, não se dispersem, estejam ao alcance da mente.
Quanto mais o lúcido pensa, mais percebe que lucidez plena não existe, o que existe são suposições, algumas até coerentes, o que nos mantêm no eixo.
Lúcido é aquele que sabe que lucidez é uma falácia, e não pira com isso.
Recebe a conta das mãos do demônio, calcula os ganhos e os prejuízos, e paga.
Custa sim, Viviane, os olhos da cara, esse vício de pensar e repensar, pensar e compensar, pensar, pensar, pensar e morrer do mesmo jeito.
Por isso achei tão interessante seu poema.
Você matou a charada: Lúcifer é uma espécie de padroeiro dos lúcidos e lúcido é só um outro nome para louco.
O louco que tem a cabeça no lugar demais.

O tempo perdoa tudo
Se alguém mata uma pessoa e consegue escapar da polícia, mantendo se fora do alcance da lei por um longo período,o crime prescreve.
Vinte anos depois do delito cometido, fica extinguida a punibilidade do criminoso por o estado não tê lo julgado e condenado em tempo hábil.
Agora pense bem: se até a Justiça admite que depois de os ânimos serenarem ninguém precisa mais de castigo, talvez a gente também devesse suspender a pena daqueles que cometeram crimes contra o nosso coração.
Mágoas entre pais e filhos, por exemplo.
Não tem nada mais complicado do que família, você sabe.
Amor à parte, os desentendimentos são generalizados, e às vezes uma frustração infantil segue perturbando a gente até a idade adulta.
Seu pai nunca lhe deu um abraço É um crime fazer isso com a criança, mas é preciso prescrevê lo.
Vinte anos depois, não da para continuar usando essa justificativa para explicar por que você usa drogas ou por que não consegue ser afetuoso com os outros.
Cresça e perdoe.
Você jurou que nunca mais iria falar com aquele seu amigo que lhe dedurou no colégio Eu também acho que duderagem é falta de caráter, e você teve toda a razão de ficar danado da vida.
Mas quanto tempo faz isso O cara agora está jogando futebol no seu time, tem sido um companheirão, e você segue não baixando a guarda por causa daquela molecagem do passado.
Releve e chame o ex inimigo para tomar uma cerveja, por conta dos novos tempos.
Dureza, agora: ele foi o amor da sua vida.
Chegaram a noivar.
Você já estava comprando o enxoval quando o cara terminou tudo.
Por telefone.
Não deu explicação: rompeu e desligou.
Na mesma semana seguinte foi visto enrabichado numa bisca.
Você deseja ardentemente que ambos caiam numa piscina lotado de piranhas famintas.
Apoiado.
Mas faz quanto tempo isso Você já casou, ele já casou, aquela bisca não durou nem duas semanas.
Por que ainda fingir que não o vê quando o encontra num restaurante É bandeira demais ficar tanto tempo magoada.
E a tal superioridade, onde anda Dê um abaninho pra ele.
Se quem estrangula e degola recebe o perdão da sociedade depois de duas décadas, os pequenos criminosos do cotidiano também merecem que a passagem do tempo atenue seus delitos.
Não cultive rancor.
Se não quiser mais conviver com aquele que lhe fez mal, não conviva, mas não fique até hoje armando estratégias de vingança.
Perdoe.
Vinte anos depois, bem entendido.
Texto do livro NON STOP, dezembro de 1999