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Raul Seixas

Eu do Sol
Hoje a janela me ofereceu uma paisagem
Ofereceu me o pôr do sol
muitos, eu sei, em meu lugar seriam capazes de poetar
de escrever em tintas coloridas ou belas palavras
O cenário que se apresentava ante minha janela
Eu, eu porém estava neutro
eu havia visto aquilo antes
muitos exaltaram o lilás avermelhado do céu
teceriam espíritos iluminados das nuvens
ressuscitando formas
Ontem, eu teceria também, mas hoje estou neutro
sem forças, somente existindo
ontem, eu disse, que lindo azul eu sou
que lilás avermelhado eu posso ver
eu posso, eu posso ver
pois a natureza é incolor
Natureza morta
somente átomos em profusão dominam
o que percebemos erradamente como formas numa gestalt
que no fundo não há nada de belo
é só você, você, você
os poetas descritivos estão redondamente enganados
ao invés de exaltar a beleza da natureza falsa
deveriam dedicar odes a si próprios
exaltando nosso eu
que sem dúvida é maravilhoso e incrível
pois é com esse mecanismo complexo que nos leva
a perceber tais fotografias
O pôr do sol
Eu me ponho às 6 horas na Bahia e às 7 no Rio
Eu sou o céu com andorinhas
Eu sou o mar com seus peixes
Eu sou o mundo inteiro
assim piso no lugar que cheguei
aqui está minha ode que faria ontem
Eu sou o sol
que belo lilás estou, que faço aqui, porque me ponho
criatura cheia de porquês e vivo e gracioso cérebro
que linda massa acinzentada, oh
máquina poderosa, força de energias mil
faze me crer que estou vivo
que existo nesse Brasil
Ô mago do cosmos, poderoso mais que Alexandre
poderoso mais que eu possa conceber ou imaginar
entre tu e as tripas aparentemente parecidas
diferes em criação desde tempos já idos
Oh, massa molecular
eu sou o azul lilás que essa janela me trás

Texto Sem Título [1976]
Aí então o mundo todo estava com um pano no pescoço, e o chefe dos soldados gostou e disse que todos tinham que usar aquilo.
Foi assim que até hoje (mesmo no calor e mesmo sem pescoço grande) é que seu pai usa gravata.
Tia Lúcia gosta muito de diamantes de perfumes franceses.
Ela gosta por que diamante é uma pedra muito difícil, poucas pessoas têm, e ela acha bonito.
Eu não gosto por que não preciso mesmo, mesmo, dele.
Ele só fica ali pendurado no pescoço, e além disso ele não serve para brincar.
E outra coisa, eu sou uma pessoa diferente dela e é por isso que ela gosta de diamantes e eu não.
Vamos fazer um brinquedo: vamos inventar uma palavra qualquer.
V a l o r.
O que que isso quer dizer Valor é a maneira de cada pessoa ser diferente das outras.
Cada um dá "valor" àquelas coisas que cada um gosta, certo É como dar nota.
Eu dou nota 10 a minha bicicleta e dou 0 ao diamante.
Eu tenho um valor para cada coisa do mundo.
Eu tenho muitos valores, quer dizer, tenho muitas notas que eu dou a tudo que eu gosto e que eu não gosto.
Todo mundo tem também seus "valores", suas notas.
Quer ver O padre.
O valor dele é a reza.
Ele acha que se a pessoa rezar vai sempre estar contente.
Mas o padre, coitado, ele não sabe que tem gente que está contente sem precisar rezar.
Eu não gosto de ficar triste.
Ficar triste é chato, por que a gente só fica triste quando está fazendo o que não gosta.
Veja só, porque se você está fazendo o que gosta você só pode estar feliz da vida; e, por falar em vida, você sabe o que é vida
Vida é viver contente.
Basta você fazer o que gosta e nunca o que outra pessoa diferente lhe manda fazer.
Claro, né Aí todo mundo fica vivendo contente.
Mas como é então que pode tanta gente diferente um do outro viver junto assim como lá na cidade Parece que todo mundo é igual por que todo mundo trabalha, e se todo mundo trabalha é por que todo mundo é igual.
Não, tem muita gente que trabalha porque se não trabalha não tem dinheiro pra comprar comida e aí morre magrinho.
Quem inventou o dinheiro
Não sei quem, mas foi um homem alto e louro.
Mas isso foi há muito tempo.
Pra que o dinheiro
Do dinheiro foi feito para que todo mundo tenha que trabalhar para comprar comida.
Se não trabalha não come.
Você trabalha para alguém e essa pessoa lhe paga, lha dá o dinheiro.
Mas então quem trabalha e não gosta é uma pessoa muito triste, coitada.
Pois é, mas você não deve ter pena dela porque se essa pessoa não faz o que gosta é porque é burra e não sabe como é fácil ser feliz.

O dia apresentava como que envolvido por uma névoa branco acinzentada e chegava a lembrar o famoso fog da Inglaterra.
No ar pairava uma coisa mágica que só os ingleses também sentem como uma coisa natural, que faz parte deles, que nasceu com eles.
Eu caminhava absorto e atento ao mesmo tempo, completamente envolvido por tudo o que estava à minha volta, e ao mesmo tempo completamente tomado pelo ambiente que me envolvia em seu clima a cada instante, me levando a esquecer que existia qualquer outra coisa que não fosse aquilo.
E foi nesse estado que de repente fui tomado de surpresa e "volta à realidade", por um barulho alto, estridente e agressivo pela surpresa com que se fez ouvir.
Parei como um gesto de defesa e precaução instintivo, sentindo o coração acelerado e o sangue correndo em todo o meu corpo, me colocando todo em posição de ataque contra o que havia se intrometido em minha privacidade de uma maneira tão inconveniente.
E qual não foi minha surpresa ao deparar com um ser nunca visto por mim nem parecido, em qualquer parte do mundo ou em qualquer coisa.
Era como um velho de longas barbas brancas, nu, magro, mostrando as costelas que lhe pulavam no corpo.
Os cabelos longos e lisos caídos pelas costas e braços finos e ossudos, um sorriso meio sarcástico dentro de um ar inteligente (gosto muito de pessoas com ar inteligente) e um olhar azul onde se poderia ver claramente uma segurança e uma certeza de saber que ali o que podia conduzir as coisas era ele, e não eu como sujeito fraco e medroso com o fato de temer o inesperado.
Ei, você também é um inesperado para mim (disse ele como se eu tivesse dito qualquer coisa a esse respeito), pois nunca o vi antes e você invadiu o meu ponto.
Quase sem conseguir balbuciar qualquer palavra, respondi:
Que Que é você
O que você quiser que eu seja respondeu me como se isso fosse fácil para mim de entender.
Depois de alguns segundos, sentindo aquela presença que me fixava e transmitia milhões de sentimentos nunca antes experimentados por mim, tentei entabular uma conversa..
Olha, não estou entendendo nada, não sei como nem de onde você apareceu, mas o que é que você quer
Ora disse o velho , como já disse, você entrou no meu ponto.
Eu estava descansando aqui quando você me pisou me ignorando completamente.
Voê acha que pode sair por aí pisando nas pessoas, como se elas não existissem
Mas eu não o vi.
Não havia nada aqui a não ser essa àrvore, algumas pedras e grama
E você diz que isso é só Eu sou isso tudo.
Eu sou a grama deste lugar e estando em contato com a árvore sou também um pedaço dela, e as pedras também me compõem.
Ora, mas isso existe em todo esse lugar, e até agora não havia ninguém reclamando nem comigo nem com ninguém.
Onde estão os outros
Ah, eles normalmente quando vêem vocês (humanos) se aproximando, ou se escondem embaixo da terra ou voam e ficam esperando que vocês passem para que possam voltar aos seus devidos lugares.
Mas eu já estou velho e me cansa muito todo esse exercício de subir e descer.
Vocês deveriam sentir mais as coisas em volta de vocês, não acha
Sim, sim, você está certo, mas realmente estamos acostumados a fazer isso como se fosse nada.
Ah, ah, aí que está.
Vocês não querem se aperceber do que existe por que é muito mais cômodo desconhecer do que tomar consciência, não é isso implica cuidado, cautela, respeito e consideração, e pra vocês, já pude notar que é bastante dificil.
Oh, vocês são tão complicados.
É só uma questão de despertar os sentidos e desenvolvê los, já que eles fazem parte de vocês.
Mas sente aí.
Não há ninguém por perto no momento.
Aceitei o convite e sentei ao lado daquela figura que se espalhou pelo chão como uma sombra água, sem forma e descontraída.
Seus olhos agora estavam fixos numa folha que lhe roçava os lábios, e comeu a inesperadamente.
OK, venha comigo.
E, sem me dar tempo para pensar, levou me com ele para sua forma, para seu mundo.
(1977)