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Eduardo Galeano

O medo
Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das Índias.
Chegou em casa numa gaiola.
Ao meio dia, abri a porta da gaiola.
Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.(p.
111)
A desmemória / 3
Nas ilhas francesas do Caribe, os textos de história ensinam que Napoleão foi o mais admirável guerreiro do Ocidente.
Naquelas ilhas, Napoleão restabeleceu a escravidão em 1802.
A sangue e fogo obrigou os negros livres a voltarem a ser escravos nas plantações.
Disso, os textos não dizem nada.
Os negros são os netos de Napoleão, não as suas vítimas.
(p.
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A desmemória/4
Chicago está cheia de fábricas.
Existem fábricas até no centro da cidade, ao redor do edifício mais alto do mundo.
Chicago está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários.
Ao chegar ao bairro de Heymarket, peço aos meus amigos que me mostrem o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles operários que o mundo inteiro saúda a cada primeiro de maio.
Deve ser por aqui me dizem.
Mas ninguém sabe.
Não foi erguida nenhuma estátua em memória dos mártires de Chicago na cidade de Chicago.
Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada.
O primeiro de maio é o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mundo; mas nos Estados Unidos, o Primeiro de maio é um dia como qualquer outro.
Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do vento, ou da mão de Deus ou do amo.
Após a inútil exploração de Heymarket, meus amigos me levam para conhecer a melhor livraria da cidade.
E lá, por pura curiosidade, por pura casualidade, descubro um velho cartaz que esta como que esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música, rock e cinema.
O cartaz reproduz um provérbio da África: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.
(p.
115)

Celebração da amizade/2
Juan Gelman me contou que uma senhora brigou a guarda chuvadas, numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais.
Os funcionários estavam caçando pombos quando ela emergiu de um incrível Ford bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam a manivela; e brandindo seu guarda chuva, lançou se ao ataque.
Agitando os braços abriu caminho, e seu guarda chuva justiceiro arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados.
Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda chuvadas contra os funcionários.
Os funcionários só atinaram em se proteger, como puderam, com os braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, faça me o favor, estamos trabalhando, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no prefeito , senhora, que bicho picou a senhora , esta mulher endoidou
Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação.
Depois de um longo silencio, ela disse:
Meu filho morreu.
Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa.
Também disseram que naquela manhã tinham muito o que fazer, a senhora compreende
Meu filho morreu repetiu ela.
E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade
Cretinos fulminou a senhora.
E longe dos funcionários, longe de tudo, disse:
Meu filho morreu e se transformou em pombo.
Os funcionários calaram e ficaram pensando um tempão.
Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calcadas, propuseram:
Senhora: por que não leva seu filho embora e deixa a gente trabalhar
Ela ajeitou o chapéu preto:
Ah! Não! De jeito nenhum!
Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena:
Eu não sei qual dos pombos é meu filho.
E se soubesse, também não ia levá lo embora.
Que direito tenho eu de separá lo de seus amigos
p.
239

A noite/1
Não consigo dormir.
Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras.
Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.
(p.
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O diagnóstico e a terapêutica
O amor e uma das doenças mais bravas e contagiosas.
Qualquer um reconhece os doentes dessa doença.
Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite apos noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes.
O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida.
Pode ser provocado, mas não pode impedir.
Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada.
O amor e surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas.
Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo.
(p.
91)
A noite/2
Arranque me, senhora, as roupas e as dúvidas.
Dispa me, dispa me.
(p.
92)
A noite/3
Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.
(p.
94)
A pequena morte
Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer e uma alegria que dói.
Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar nos faz por juntar nos, e perdendo nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia.
Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.
(p.
95)
O devorador devorado
[ ] os amantes se comem entre si de ponta a ponta, todos todinhos, todo poderosos, todo possuídos, sem que fique sobrando a ponta de uma orelha ou um dedo do pé.
(p.
97)
(O Livro dos Abraços)

Teologia/1
O catecismo me ensinou, na infância, a fazer o bem por interesse e não fazer o mal por medo.
Deus me oferecia castigos e recompensas, me ameaçava com o inferno e me prometia o céu; e eu temia e acreditava.
Passaram se os anos.
Eu já não temo nem creio.
E, em todo caso – penso – se mereço ser assado cozido no caldeirão do inferno, condenado ao fogo lento e eterno, que assim seja.
Assim me salvarei do purgatório, que está cheio de horríveis turistas da classe média; e no final das contas, se fará justiça.
Sinceramente: merecer, mereço.
Nunca matei ninguém, é verdade, mas por falta de coragem ou de tempo, e não por falta de querer.
Não vou à missa aos domingos, nem nos dias de guarda.
Cobicei quase todas as mulheres de meus próximos, exceto as feias, e assim violei, pelo menos em intenção, a propriedade privada que Deus pessoalmente sacramentou nas tábuas de Moisés: Não cobiçarás a mulher de teu próximo nem seu touro, nem seu asno E como se fosse pouco, com premeditação e deslealdade cometi o ato do amor sem o nobre propósito de reproduzir a mão de obra.
Sei muito bem que o pecado carnal não é bem visto no céu; mas desconfio que Deus condena o que ignora.
Teologia/2
O deus dos cristãos, Deus da minha infância, não faz amor.
Talvez o único deus que nunca fez amor, entre todos os deuses de todas as religiões da história humana.
Cada vez que penso nisso, sinto pena dele.
E então o perdôo por ter sido meu super pai castigador, chefe de polícia do universo, e penso afinal que Deus também foi meu amigo naqueles velhos tempos, quando eu acreditava Nele e acreditava que Ele acreditava em mim.
Então preparo a orelha, na hora dos rumores mágicos, entre o pôr do sol e o nascer e subir da noite, e acho que escuto suas melancólicas confidências.
Teologia/3
Errata: onde o Antigo Testamento diz o que diz, deve dizer aquilo que provavelmente seu principal protagonista me confessou:
Pena que Adão fosse tão burro.
Pena que Eva fosse tão surda.
E pena que eu não soube me fazer entender.
Adão e Eva eram os primeiros seres humanos que nasciam da minha mão, e reconheço que tinham certos defeitos de estrutura, construção e acabamento.
Eles não estavam preparados para escutar, nem para pensar.
E eu bem, eu talvez não estivesse preparado para falar.
Antes de Adão e Eva, nunca tinha falado com ninguém.
Eu tinha pronunciado belas frases, como “Faça se a luz”, mas sempre na solidão.
E foi assim que, naquela tarde, quando encontrei Adão e Eva na hora da brisa, não fui muito eloqüente.
Não tinha prática.
A primeira coisa que senti foi assombro.
Eles acabavam de roubar a fruta da árvore proibida, no centro do Paraíso.
Adão tinha posto cara de general que acaba de entregar a espada e Eva olhava para o chão, como se contasse formigas.
Mas os dois estavam incrivelmente jovens e belos e radiantes.
Me surpreenderam.
Eu os tinha feito; mas não sabia que o barro podia ser tão luminoso.
Depois, reconheço, senti inveja.
Como ninguém pode me dar ordens, ignoro a dignidade da desobediência.
Tampouco posso conhecer a ousadia do amor, que exige dois.
Em em homenagem ao princípio de autoridade, contive a vontade de cumprimentá los por terem se feito subitamente sábios em paixões humanas.
Então, vieram os equívocos.
Eles entenderam queda onde falei vôo.
Acharam que um pecado merece castigo se for original.
Eu disse que quem desama peca: entenderam que quem ama peca.
Onde anunciei pradaria em festa, entenderam vale de lágrimas.
Eu disse que a dor era o sal que dava gosto à aventura humana: entenderam que eu os estava condenando, ao outorgar lhes a glória de serem mortais e loucos.
Entenderam tudo ao contrário.
E acreditaram.
Ultimamente ando com problemas de insônia.
Há alguns milênios custo a dormir.
E gosto de dormir, gosto muito, porque quando durmo, sonho.
Então me transformo em amante ou amanta, me queimo no fogo fugaz dos amores de passagem, sou palhaço, pescador de alto mar ou cigana adivinhadora da sorte; da árvore proibida devoro até as folhas e bebo e danço até rodar pelo chão
Quando acordo, estou sozinho.
Não tenho com quem brincar, porque os anjos me levam tão a sério, nem tenho a quem desejar.
Estou condenado a me desejar.
De estrela em estrela ando vagando, aborrecendo me no universo vazio.
Sinto me muito cansado, me sinto muito sozinho.
Eu estou sozinho, eu sou sozinho, sozinho pelo resto da eternidade.
p.
(O Livro dos Abraços)