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Gean Zanelato

INSATISFAÇÃO
Acontece a qualquer momento.
Enquanto passo o pó de café, finalizo um relatório importante, ou durante a faxina de todo o santo dia.
Entre uma música e outra no rádio, o silêncio abafa e escuto: fuja.
Levanto as sobrancelhas e olho pros lados.
Ufa.
Ninguém ouviu.
Esse desejo secreto, quase bandido, que faz da minha própria vida uma refém de mim mesmo.
O cotidiano é uma arma pressionada contra a minha cabeça.
Despertando às 7h, horários marcados.
Passa hora, passa dia, passa noite, continuo preso, sem ter aonde ir.
Ando em círculos numa cela do tamanho do mundo.
Tantas vias, mas tão complexas.
E esse meu destino, distante, que nem sei se existe.
Por um instante eu fico feliz.
Conquistei o que eu queria, beijei, escrevi, li, trabalhei, corri, comi, caguei.
Mas e depois A felicidade se esvai a cada meta alcançada.
Depois só me resta sonhar e esperar de novo pela alegria da realização.
No momento seguinte, acabou.
A felicidade não dura, sequer, um momento.
Minha vontade de ir embora é a plenitude da satisfação, pois a rotina calculada me embrulha o estômago.
“Bom dia, amor”.
“Deixei a chave embaixo do tapete”.
Mensagem por mensagem, deixo a mim mesmo embaixo do tapete.
Deixo o eu que quer viajar.
O eu sem hora pra voltar.
O eu que não depende de nada nem ninguém para fazer o que quiser.
É difícil ser fiel a uma rotina quando bem no fundo de mim sei que não pertenço a lugar nenhum.
Minhas roupas são escorregadias.
A cadeira em que almoço, desconfortável.
Até o sagrado quarto aonde descanso todas as noites é alugado.
Nada é meu.
Só o meu corpo me pertence, e ainda assim eu o maltrato.
Às vezes deixo de comer, aperto a cinta, raspo meus pelos como se não reconhecesse minha pele.
Vejo no espelho: ainda que eu fuja desta casa, continuaria preso num corpo limitado para as minhas expectativas.
Dia após dia, essa é a vida.
Medrosa que é, ela se esconde atrás de máscaras, abaixo de camadas de ossos, carne, pele e roupas.
Dia após dia, se camufla da morte por debaixo das músicas do rádio, barulho d’água monótona na pia e das vozes que abafam o silêncio.
A vida é a insatisfação que grita no silêncio.
Mas não a ouço direito pelo meu próprio medo de viver.
E assim eu me acostumei a morrer dia após dia.

A DURAS PENAS
Lara barganhou o Mothorhome por meses, antes de adquiri lo.
Era um trailer pequeno, com a mesinha, armários envernizados, o frigobar e a cama.
Mas não importava se fosse simples, sujo ou claustrofóbico.
Bastava para ir embora.
Encheu o com tudo o que tinha e, em apenas três dias, partiu em busca de um sonho.
Ao pisar no acelerador, deixou para trás o marido.
Se conheceram no ensino médio, casaram se cedo e construíram uma cerca branca aos trinta.
Aí começaram as bebedeiras, chegadas tardias, brigas, mágoas e o silêncio.
Passaram a trocar poucas palavras entre si.
Lara não podia dizer o que pensava, pois isso colocaria em risco o relacionamento e ela nada seria sem ele.
Foram anos de um vazio que ela viveu sabe se lá porque.
Viveu não, suportou.
Servia a ele como uma empregada durante o dia e boneca inflável durante a noite.
Lavava as roupas e o ouvia reclamar sobre tudo, como se ele tivesse uma vida terrível.
Ela queria dizer o que sentia sobre o dia.
Reclamar da queimadura no dedo, da roupa manchada ou dos cães que cagavam por tudo.
Mas ao abrir a boca, temia.
Que ele se cansasse, retrucasse ou ignorasse.
O que era dela sem ele afinal
O pior era quando ele partia, pois nada sobrava para fazer.
Não tinha com quem conversar, a quem servir.
A ambição de tornar se fotógrafa ficara na faculdade.
As amigas com quem conversava já tinham suas próprias vidas, bem longe dali.
Lara fora proibida de falar com elas há muito.
Depois foi, aos poucos, sufocando a si mesma.
Transformando se numa sombra, em cinza, até ser tragada quase que completamente.
Mas quase que completamente não é tudo.
Escondida na fumaça, quem diria, havia uma luz.
Lara a guardava dentro da caixa de sapatos, junto dos poemas que ele nunca lia.
De moeda a moeda, como quem compra a liberdade da prisão, lá ela juntou as próprias economias.
Só foi preciso um passo, um contato, um ato, não de covardia, para ela largar tudo de mão e correr de volta a si mesma.
Aí chega a parte que eu acho mais linda.
Não foi preciso outro alguém para resgatá la do abismo, da escuridão que ela vivia.
Lara foi embora para uma terra distante, onde não havia muitas pessoas e conheceu uma das praias que ela sempre sonhou.
Quando lá chegou, pelo que dizem, tirou as sandálias, segurou a saia florida e correu para o mar, agradecendo ao universo pela vida.
O marido ficou no coração, mas dele jamais precisou para ser feliz.
Lara entendeu que, ao abrir as próprias asas, renasceu.
Calçou as sandálias, voltou ao trailer e seguiu o próprio rumo, pelas estradas desertas, moinhos e campos floridos.
Porque no final das contas é assim com todos, concluiu.
É preciso saber que na vida nós viemos, ficamos e vamos sozinhos.

SILÊNCIO
No silêncio tudo se ouve.
Os pensamentos, os sentimentos, o medo, o coração.
De olhos fechados, o bafo da morte ressoa por perto.
Também os passos no assoalho, os latidos caninos e o vento pavoroso que não vem de lugar algum.
No silêncio a ansiedade cede espaço à calmaria, virtude quase sem voz durante o dia.
Nela sossegam se os ânimos, intensificam se os cheiros, percebem se os detalhes em pequeno, médio e grande plano.
Silêncio é lugar de pensar antes de falar, se arrepender e confessar, sorrir sem se orgulhar.
É nele que a culpa fala mais alto e a humildade ocupa seu lugar de dever.
No silêncio nós nos recuperamos após a morte de um amor.
E reencontramos o pouco de nós que se perdeu com o outro que saiu pela porta.
Vemos e ouvimos o que requer apreciação: uma flor, o mar, um gesto, uma ruga, um olhar.
Somente no ato de não manifestar pensamentos é que olhamos de verdade.
Olhamos sem falar nem julgar.
O silêncio é uma barreira invisível, atrás da qual nos escondemos.
Nós nos ocupamos com ruídos a todos os momentos por medo de cair no vazio.
Escutamos os barulhos sem ouvi los, tratando tudo e todos como trilha sonora de um universo que nos rodeia.
Aumentamos o volume da playlist, ligamos a tevê, entramos no Youtube, tudo porque quietude demais nos assusta.
No silêncio dois olhos se encontram para ver além dos olhos.
Olham para um lugar dentro do outro onde há ternura, apatia ou desprezo.
Também a pele ganha outro sentir no silêncio.
Um toque de mãos muda de nome e um beijo ah, um beijo são mil palavras não ditas.
No silêncio não falamos besteiras das quais nos arrependemos, mas refletimos sobre arrependimentos que não tivemos coragem de falar.
Também nos constrangemos, irritamos, nos entediamos com a ausência de som.
Isso porque confundimos a abundância da respiração, do fundo dos mares e do interior de nós mesmos, com o que chamamos de nada.
O silêncio é deus.
Silêncio é tudo.

Meu tipo de gente
Eu costumava aplaudir gente famosa.
Ia a teatros para ver palhaços, via entrevistas para dar risadas, contava piadas para ser notado.
Mas, de repente, eu mudei o meu tipo de gente.
Não vejo mais graça em palhaços do twitter, reviro os olhos pras piadas levianas e prefiro as conversas sérias, aprofundadas, principalmente sobre assuntos que eu não domino.
Meu tipo de gente é quem me ensina.
Quem faz com calma.
Quem estende as mãos, sem pudor, e sorri se não há nada a dizer.
Meu tipo de gente não tem motivos para palhaçadas.
Pois já são trapezistas, mágicos e bailarinas, no dia a dia do espetáculo da vida.
E eles não têm medo dizer o que pensam.
Mas respeitam que existem os que sabem mais, e que ninguém no mundo pensa igual.
Gosto de gente bem resolvida.
Que escolhe por si e não depende de conselhos.
Gente que repensa a própria vida, os próprios erros, acertos, vitórias e derrotas.
Meu tipo de gente conhece mais a si que aos outros.
Por isso impõe limite entre a privacidade e a rodinha de bar.
Compartilha, se quiser.
Apenas se o assunto somar.
Meu tipo de gente é de verdade.
Sente, chora, dança, cai, se levanta e sonha.
Tudo numa mesma medida.
Pode até chorar de menos, sentir de mais, mas não se deixa carregar pela incerteza de um sonho.
Mantém um pé na realidade e trabalha para conquistar o que deseja.
Quando não dá certo, a minha gente sorri, pois já sabe que o mundo não está aí para embalar ninguém.
Minha gente escuta boas histórias, assiste bons programas, lê o que lhes convém.
São Marinas, Vivianes, Beatrizes e Isabellas, que, no fundo, nada tem a ver comigo.
São só elas.
Mas quem é muito diferente e me respeita como eu sou, essa é a minha gente.
Aplausos.
Vocês merecem.