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Gean Zanelato

21 (ou memórias limitadas)
Hoje eu completo 21 anos.
Que maravilha.
Vou confessar que nunca me imaginei com 21 antes.
Já me imaginei com 70, aposentado, deitado numa cadeira de praia em Bahamas.
E também com 30, estabelecido, quem sabe formando família e financiando um apartamento.
Mas jamais pensei que chegaria aos 21.
Que idade! Não sou tão jovem como quando tinha 20, nem mesmo um brotinho de adulto aprendendo a pagar contas.
De repente pulei um degrau e caí no mundo real.
Bum.
Estou aqui.
Tenho 21 anos e sou um adulto.
Cem por cento consciente e responsável pela minha própria vida.
Com 17 eu olhava os de 21 e achava os velhos demais.
Pensava: “falta um cem anos até eu chegar aí”.
Mas o século passou como um piscar de olhos.
Olho ao redor e noto que o imaginar virou realidade.
O tempo passou.
A criança cresceu.
Já não dá pra fingir que sou adolescente.
Pela primeira vez eu percebo que cada uma das minhas idades, aniversários, velinhas sopradas e presentes abertos jamais voltarão.
São só memórias limitadas (que com o correr dos anos vão se esticando, se rasgando e se perdendo no esquecimento).
Percebo que talvez eu não crie uma memória aos 22.
São 365 dias que me separam do meu próximo aniversário.
Nesse meio tempo eu posso ser atropelado, esquartejado, me afogar, levar uma bala perdida, ou ser vítima de um desastre natural.
Até se o meu corpo falhar, o diagnóstico: “no máximo 3 meses” pode ser dito por um médico.
Isso existe, não Ou as doenças terminais afetam só os idosos Não sejamos hipócritas.
Fazer 21 significa estar atento às mudanças do mundo.
A própria idade é um alerta.
É como se o calendário dissesse: “Agora perceba o quanto mudou.
Nada jamais se repete” .
E assim me dou conta que nenhum apego valeu a pena.
Nem as aversões tiveram sentido algum.
Pra quê me apeguei tanto a uma ideia, um sonho, ou um relacionamento se tudo acaba um dia Pra quê me ceguei de ódio por aquela pessoa Também de nada adiantou eu me frustrar demais pelas derrotas, ou estacionar nas minhas vitórias.
As coisas mudaram.
E a tal “estabilidade”, na realidade, nunca existiu.
É um mito.
Tudo nesta vida está em constante transformação.
Percebo agora que não existe um Gean criança, um Gean adulto e um Gean idoso.
Somos vários tempos numa só pessoa.
Sou o mesmo adolescente envergonhado por cantar em público.
Sou a criança sensível que um dia observava as abelhas no jardim.
A sensibilidade é a criança que já fui e ainda vive no meu interior.
Reconheço outras idades em determinados medos, traumas, sensações, arrependimentos e aprendizados.
O antigos eus continuam aqui.
Alguns deles até estão mais presentes que outros – esses pode ser que me acompanhem até o definitivo fim.
Só me resta agora sorrir e agradecer.
Que bom estar vivo.
Que maravilha poder celebrar mais um ano de amizades, descobertas, tristezas, erros, lições, amores e temores.
Que alegria entender que não pulamos de fases como num jogo.
Mas deslizamos pelas idades feito o correr das águas de um rio.
Por vezes mansa, por outras transbordando pelas margens.
Enquanto houver água, que haja vida.
Já se foram 21 anos da minha.
Tempos que desaguaram em belos lagos cintilantes, oceanos profundos e em cachoeiras paradisíacas.

A DURAS PENAS
Lara barganhou o Mothorhome por meses, antes de adquiri lo.
Era um trailer pequeno, com a mesinha, armários envernizados, o frigobar e a cama.
Mas não importava se fosse simples, sujo ou claustrofóbico.
Bastava para ir embora.
Encheu o com tudo o que tinha e, em apenas três dias, partiu em busca de um sonho.
Ao pisar no acelerador, deixou para trás o marido.
Se conheceram no ensino médio, casaram se cedo e construíram uma cerca branca aos trinta.
Aí começaram as bebedeiras, chegadas tardias, brigas, mágoas e o silêncio.
Passaram a trocar poucas palavras entre si.
Lara não podia dizer o que pensava, pois isso colocaria em risco o relacionamento e ela nada seria sem ele.
Foram anos de um vazio que ela viveu sabe se lá porque.
Viveu não, suportou.
Servia a ele como uma empregada durante o dia e boneca inflável durante a noite.
Lavava as roupas e o ouvia reclamar sobre tudo, como se ele tivesse uma vida terrível.
Ela queria dizer o que sentia sobre o dia.
Reclamar da queimadura no dedo, da roupa manchada ou dos cães que cagavam por tudo.
Mas ao abrir a boca, temia.
Que ele se cansasse, retrucasse ou ignorasse.
O que era dela sem ele afinal
O pior era quando ele partia, pois nada sobrava para fazer.
Não tinha com quem conversar, a quem servir.
A ambição de tornar se fotógrafa ficara na faculdade.
As amigas com quem conversava já tinham suas próprias vidas, bem longe dali.
Lara fora proibida de falar com elas há muito.
Depois foi, aos poucos, sufocando a si mesma.
Transformando se numa sombra, em cinza, até ser tragada quase que completamente.
Mas quase que completamente não é tudo.
Escondida na fumaça, quem diria, havia uma luz.
Lara a guardava dentro da caixa de sapatos, junto dos poemas que ele nunca lia.
De moeda a moeda, como quem compra a liberdade da prisão, lá ela juntou as próprias economias.
Só foi preciso um passo, um contato, um ato, não de covardia, para ela largar tudo de mão e correr de volta a si mesma.
Aí chega a parte que eu acho mais linda.
Não foi preciso outro alguém para resgatá la do abismo, da escuridão que ela vivia.
Lara foi embora para uma terra distante, onde não havia muitas pessoas e conheceu uma das praias que ela sempre sonhou.
Quando lá chegou, pelo que dizem, tirou as sandálias, segurou a saia florida e correu para o mar, agradecendo ao universo pela vida.
O marido ficou no coração, mas dele jamais precisou para ser feliz.
Lara entendeu que, ao abrir as próprias asas, renasceu.
Calçou as sandálias, voltou ao trailer e seguiu o próprio rumo, pelas estradas desertas, moinhos e campos floridos.
Porque no final das contas é assim com todos, concluiu.
É preciso saber que na vida nós viemos, ficamos e vamos sozinhos.

SILÊNCIO
No silêncio tudo se ouve.
Os pensamentos, os sentimentos, o medo, o coração.
De olhos fechados, o bafo da morte ressoa por perto.
Também os passos no assoalho, os latidos caninos e o vento pavoroso que não vem de lugar algum.
No silêncio a ansiedade cede espaço à calmaria, virtude quase sem voz durante o dia.
Nela sossegam se os ânimos, intensificam se os cheiros, percebem se os detalhes em pequeno, médio e grande plano.
Silêncio é lugar de pensar antes de falar, se arrepender e confessar, sorrir sem se orgulhar.
É nele que a culpa fala mais alto e a humildade ocupa seu lugar de dever.
No silêncio nós nos recuperamos após a morte de um amor.
E reencontramos o pouco de nós que se perdeu com o outro que saiu pela porta.
Vemos e ouvimos o que requer apreciação: uma flor, o mar, um gesto, uma ruga, um olhar.
Somente no ato de não manifestar pensamentos é que olhamos de verdade.
Olhamos sem falar nem julgar.
O silêncio é uma barreira invisível, atrás da qual nos escondemos.
Nós nos ocupamos com ruídos a todos os momentos por medo de cair no vazio.
Escutamos os barulhos sem ouvi los, tratando tudo e todos como trilha sonora de um universo que nos rodeia.
Aumentamos o volume da playlist, ligamos a tevê, entramos no Youtube, tudo porque quietude demais nos assusta.
No silêncio dois olhos se encontram para ver além dos olhos.
Olham para um lugar dentro do outro onde há ternura, apatia ou desprezo.
Também a pele ganha outro sentir no silêncio.
Um toque de mãos muda de nome e um beijo ah, um beijo são mil palavras não ditas.
No silêncio não falamos besteiras das quais nos arrependemos, mas refletimos sobre arrependimentos que não tivemos coragem de falar.
Também nos constrangemos, irritamos, nos entediamos com a ausência de som.
Isso porque confundimos a abundância da respiração, do fundo dos mares e do interior de nós mesmos, com o que chamamos de nada.
O silêncio é deus.
Silêncio é tudo.

Meu tipo de gente
Eu costumava aplaudir gente famosa.
Ia a teatros para ver palhaços, via entrevistas para dar risadas, contava piadas para ser notado.
Mas, de repente, eu mudei o meu tipo de gente.
Não vejo mais graça em palhaços do twitter, reviro os olhos pras piadas levianas e prefiro as conversas sérias, aprofundadas, principalmente sobre assuntos que eu não domino.
Meu tipo de gente é quem me ensina.
Quem faz com calma.
Quem estende as mãos, sem pudor, e sorri se não há nada a dizer.
Meu tipo de gente não tem motivos para palhaçadas.
Pois já são trapezistas, mágicos e bailarinas, no dia a dia do espetáculo da vida.
E eles não têm medo dizer o que pensam.
Mas respeitam que existem os que sabem mais, e que ninguém no mundo pensa igual.
Gosto de gente bem resolvida.
Que escolhe por si e não depende de conselhos.
Gente que repensa a própria vida, os próprios erros, acertos, vitórias e derrotas.
Meu tipo de gente conhece mais a si que aos outros.
Por isso impõe limite entre a privacidade e a rodinha de bar.
Compartilha, se quiser.
Apenas se o assunto somar.
Meu tipo de gente é de verdade.
Sente, chora, dança, cai, se levanta e sonha.
Tudo numa mesma medida.
Pode até chorar de menos, sentir de mais, mas não se deixa carregar pela incerteza de um sonho.
Mantém um pé na realidade e trabalha para conquistar o que deseja.
Quando não dá certo, a minha gente sorri, pois já sabe que o mundo não está aí para embalar ninguém.
Minha gente escuta boas histórias, assiste bons programas, lê o que lhes convém.
São Marinas, Vivianes, Beatrizes e Isabellas, que, no fundo, nada tem a ver comigo.
São só elas.
Mas quem é muito diferente e me respeita como eu sou, essa é a minha gente.
Aplausos.
Vocês merecem.