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Eduardo Galeano

A vida profissional/ 2
Têm o mesmo nome, o mesmo sobrenome.
Ocupam a mesma casa e calçam os mesmos sapatos.
Dormem no mesmo travesseiro, ao lado da mesma mulher.
A cada manhã, o espelho lhes devolve a mesma cara.
Mas ele e ele não são a mesma pessoa:
E eu, o que tenho a ver com isso diz ele, falando dele, enquanto sacode os ombros.
Eu cumpro ordens diz, ou diz:
Sou pago para isso.
Ou diz:
Se eu não fizer, outro faz.
Que é como dizer:
Eu sou o outro.
Frente ao ódio da vítima, o verdugo sente estupor, e até uma certa sensação de injustiça: afinal, ele é um funcionário,um simples funcionário que cumpre seu horário e suas tarefas.
Terminada a jornada extenuante de trabalho, o torturador lava as mãos.
Ahmadou Gherab, que lutou pela independência da Argélia, me contou.
Ahmadou foi torturado por um oficial francês durante vários meses.
E a cada dia, às seis em ponto da tarde, o torturador secava o suor da fronte, desligava da tomada a máquina de dar choques e guardava os outros instrumentos de trabalho.
Então se sentava ao lado do torturado e falava de sua mulher insuportável e do filho recém nascido, que não o deixara grudar o olho a noite inteira; falava contra Orã, esta cidade de merda, e contra o filho da puta do coronel que
Ahmadou, ensangüentado, tremendo de dor, ardendo em febre, não dizia nada.
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A vida profissional/3
Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma.
Eles jamais sujam as mãos.
Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.
Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a freqüência das chuvas.
Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis conseqüências de seus atos.
Os tecnocratas reivindicam o privilegio da irresponsabilidade:
Somos neutros dizem.
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O LIvro dos Abraços

O medo
Certa manhã, ganhamos de presente um coelhinho das Índias.
Chegou em casa numa gaiola.
Ao meio dia, abri a porta da gaiola.
Voltei para casa ao anoitecer e o encontrei tal e qual o havia deixado: gaiola adentro, grudado nas barras, tremendo por causa do susto da liberdade.(p.
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A desmemória / 3
Nas ilhas francesas do Caribe, os textos de história ensinam que Napoleão foi o mais admirável guerreiro do Ocidente.
Naquelas ilhas, Napoleão restabeleceu a escravidão em 1802.
A sangue e fogo obrigou os negros livres a voltarem a ser escravos nas plantações.
Disso, os textos não dizem nada.
Os negros são os netos de Napoleão, não as suas vítimas.
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A desmemória/4
Chicago está cheia de fábricas.
Existem fábricas até no centro da cidade, ao redor do edifício mais alto do mundo.
Chicago está cheia de fábricas, Chicago está cheia de operários.
Ao chegar ao bairro de Heymarket, peço aos meus amigos que me mostrem o lugar onde foram enforcados, em 1886, aqueles operários que o mundo inteiro saúda a cada primeiro de maio.
Deve ser por aqui me dizem.
Mas ninguém sabe.
Não foi erguida nenhuma estátua em memória dos mártires de Chicago na cidade de Chicago.
Nem estátua, nem monolito, nem placa de bronze, nem nada.
O primeiro de maio é o único dia verdadeiramente universal da humanidade inteira, o único dia no qual coincidem todas as histórias e todas as geografias, todas as línguas e as religiões e as culturas do mundo; mas nos Estados Unidos, o Primeiro de maio é um dia como qualquer outro.
Nesse dia, as pessoas trabalham normalmente, e ninguém, ou quase ninguém, recorda que os direitos da classe operária não brotaram do vento, ou da mão de Deus ou do amo.
Após a inútil exploração de Heymarket, meus amigos me levam para conhecer a melhor livraria da cidade.
E lá, por pura curiosidade, por pura casualidade, descubro um velho cartaz que esta como que esperando por mim, metido entre muitos outros cartazes de música, rock e cinema.
O cartaz reproduz um provérbio da África: Até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador.
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Celebração da amizade/2
Juan Gelman me contou que uma senhora brigou a guarda chuvadas, numa avenida de Paris, contra uma brigada inteira de funcionários municipais.
Os funcionários estavam caçando pombos quando ela emergiu de um incrível Ford bigode, um carro de museu, daqueles que funcionavam a manivela; e brandindo seu guarda chuva, lançou se ao ataque.
Agitando os braços abriu caminho, e seu guarda chuva justiceiro arrebentou as redes onde os pombos tinham sido aprisionados.
Então, enquanto os pombos fugiam em alvoroço branco, a senhora avançou a guarda chuvadas contra os funcionários.
Os funcionários só atinaram em se proteger, como puderam, com os braços, e balbuciavam protestos que ela não ouvia: mais respeito, minha senhora, faça me o favor, estamos trabalhando, são ordens superiores, senhora, por que não vai bater no prefeito , senhora, que bicho picou a senhora , esta mulher endoidou
Quando a indignada senhora cansou o braço, e apoiou se numa parede para tomar fôlego, os funcionários exigiram uma explicação.
Depois de um longo silencio, ela disse:
Meu filho morreu.
Os funcionários disseram que lamentavam muito, mas que eles não tinham culpa.
Também disseram que naquela manhã tinham muito o que fazer, a senhora compreende
Meu filho morreu repetiu ela.
E os funcionários: sim, claro, mas que eles estavam ganhando a vida, que existem milhões de pombos soltos por Paris, que os pombos são a ruína desta cidade
Cretinos fulminou a senhora.
E longe dos funcionários, longe de tudo, disse:
Meu filho morreu e se transformou em pombo.
Os funcionários calaram e ficaram pensando um tempão.
Finalmente, apontando os pombos que andavam pelos céus e telhados e calcadas, propuseram:
Senhora: por que não leva seu filho embora e deixa a gente trabalhar
Ela ajeitou o chapéu preto:
Ah! Não! De jeito nenhum!
Olhou através dos funcionários, como se fossem de vidro, e disse muito serena:
Eu não sei qual dos pombos é meu filho.
E se soubesse, também não ia levá lo embora.
Que direito tenho eu de separá lo de seus amigos
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A noite/1
Não consigo dormir.
Tenho uma mulher atravessada entre minhas pálpebras.
Se pudesse, diria a ela que fosse embora; mas tenho uma mulher atravessada em minha garganta.
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O diagnóstico e a terapêutica
O amor e uma das doenças mais bravas e contagiosas.
Qualquer um reconhece os doentes dessa doença.
Fundas olheiras delatam que jamais dormimos, despertos noite apos noite pelos abraços, ou pela ausência de abraços, e padecemos febres devastadoras e sentimos uma irresistível necessidade de dizer estupidezes.
O amor pode ser provocado deixando cair um punhadinho de pó de me ame, como por descuido, no café ou na sopa ou na bebida.
Pode ser provocado, mas não pode impedir.
Não o impede nem a água benta, nem o pó de hóstia; tampouco o dente de alho, que nesse caso não serve para nada.
O amor e surdo frente ao Verbo divino e ao esconjuro das bruxas.
Não há decreto de governo que possa com ele, nem poção capaz de evitá lo, embora as vivandeiras apregoem, nos mercados, infalíveis beberagens com garantia e tudo.
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91)
A noite/2
Arranque me, senhora, as roupas e as dúvidas.
Dispa me, dispa me.
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92)
A noite/3
Eu adormeço às margens de uma mulher: eu adormeço às margens de um abismo.
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A pequena morte
Não nos provoca riso o amor quando chega ao mais profundo de sua viagem, ao mais alto de seu vôo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e suspiros, vozes de dor, embora seja dor jubilosa, e pensando bem não há nada de estranho nisso, porque nascer e uma alegria que dói.
Pequena morte, chamam na França a culminação do abraço, que ao quebrar nos faz por juntar nos, e perdendo nos faz por nos encontrar e acabando conosco nos principia.
Pequena morte, dizem; mas grande, muito grande haverá de ser, se ao nos matar nos nasce.
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O devorador devorado
[ ] os amantes se comem entre si de ponta a ponta, todos todinhos, todo poderosos, todo possuídos, sem que fique sobrando a ponta de uma orelha ou um dedo do pé.
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(O Livro dos Abraços)