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Tati Bernardi Textos

"Mais um domingo que você me liga.
Igual faz a uns quatro ou cinco anos.
Você beija a sua mãe depois do churrasco, dá um oi carinhoso e finalmente pensa sem culpa na sua ex, cheira sua camiseta pra ver se a coisa tá muito feia e descobre que sua vida está prestes a ficar vazia: chegou a hora de me ligar.
Você não sabe ao certo o que vê em mim, mas também não sabe ao certo o que não vê.
Você sabe que pode ter uma mulher mais gostosa do que eu, mas por alguma razão prefere a gostosa garantida, aquela que ainda ri das suas piadas.
Mesmo sendo as mesmas piadas há quatro ou cinco anos.
Aí você me liga, com aquele ar descompromissado e meigo de quem só quer ir no cinema com uma velha amiga.
Eu não faço a menor idéia do que vejo em você, mas também não faço idéia do que não vejo.
Eu posso ter um cara mais gostoso, como de fato já tive milhares de vezes.
Mas por alguma razão prefiro suas piadas velhas e seu jeito homem de ser.
Você é um idiota, uma criança, um bobo alegre, um deslumbrado, um chato.
Mas você é homem.
E talvez seja só por isso que eu ainda te aguente: você pode ter todos os defeitos do mundo, mais ainda é melhor do que o resto do mundo.
Aí a gente, sem saber ao certo o que está fazendo ali, mas sem lugar melhor para estar, acaba pulando o cinema que nunca existiu e indo direto ao assunto.
O mesmo assunto de quatro ou cinco anos que, assim como as suas piadas, nunca cansam ou enjoam.
E aí acontece um fenômeno muito estranho comigo.
Mesmo quando não é bom, mesmo quando cansado e egoísta você não espera por mim e vira pro lado pra dormir ou pra voltar à sua bolha egocêntrica de tudo o que é seu, eu sempre me apaixono por você.
Todas as vezes que te vi, nesses últimos quatro ou cinco anos, eu sempre me apaixonei por você.
Eu sempre estive pronta pra começar algo, pra tomar um café de verdade, pra passear de mãos dadas no claro, pra poder te apresentar ao sol sem receber mensagens de gente louca ou olhares curiosos, pra escutar uma piada nova.
E você sempre ignorou esse fato, seguindo seu caminho que sempre é interrompido pelo vazio da sua camiseta fedendo a churrasco.
Eu nunca vou entender.
Eu nunca vou saber porque a vida é assim.
Eu nunca vou entender porque a gente continua voltando pra casa querendo ser de alguém, ainda que a gente esteja um ao lado do outro.
Eu nunca vou entender porque você é exatamente o que eu quero, eu sou exatamente o que você quer, mas as nossas exatidões não funcionam numa conta de mais.
Eu só sei que agora eu vou tomar um banho, vou esfregar a bucha o mais forte possível na minha pele e vou me dizer pela milésima vez que essa foi a última vez que vou ficar sem entender nada.
Mas aí, daqui uns dias, igual faz há uns cinco ou seis anos, você vai me ligar.
Querendo pegar aquele cineminha, querendo me esconder como sempre, querendo me amar só enquanto você pode vulgarizar esse amor.
Me querendo no escuro.
E eu vou topar.
Não porque seja uma idiota, não me dê valor ou não tenha nada melhor pra fazer.
Apenas porque você me lembra o mistério da vida.
Simplesmente porque é assim que a gente faz com a nossa própria existência: não entendemos nada, mas continuamos insistindo."

Só mais um pouco de cala a boca
Vai lá dentro do chalé, vai.
Coloca o shortinho.
O chinelo verde.
Tira essa sunga molhada.
Quer ajuda Posso te ver tomar banho Posso jogar água importada em você Posso te ver contra a luz do sol Deixa
Fica sério de novo.
Isso.
Posso fazer um ensaio fotográfico com você Jogado, descabelado, na rede.
E você ainda é o homem mais lindo do mundo.
No canto da foto dos amigos bêbados, e você é o homem mais lindo do mundo.
Com gorro, no meio da confusão do frio.
Escondido embaixo de tanta roupa.
No fundo do mar.
No escuro.
De costas naquela festa chata.
Meu Deus, como você é lindo.
Não sei direito o que é aurora boreal, mas acho que deve ser algo lindo que se formava enquanto você era feito.
Não sei direito o que é isso que eu sinto por você.
Mas como é maravilhoso fumar você, cheirar você, tomar você, injetar você.
Calar a boca.
Sei que é por pouco tempo.
Somos plantas diferentes.
Pássaros diferentes.
Estamos experimentando nossos mundos tão excêntricos.
Muito em breve vamos nos afastar com a intensidade de opostos tão óbvios.
Você vai ser infinitamente o garoto mais lindo do mundo para suas garotas infinitamente mais lindas do mundo.
Todos com dezenove anos.
Todos lindos contra a luz do sol.
Todos com cabelos de comercial.
Todos idiotas e corados e lindos e sem saber o que fazer com muita beleza e pouca idade.
E eu vou continuar esperando o meu tipo charmoso, mais velho, mais feio que você, melhor do que você.
Mas por agora.
Me dá mais um pouco desse cala a boca, vai.
Vai lá dentro do chalé, vai.
Coloca o shortinho.
O chinelo verde.
Me pergunta uma daquelas coisas para eu dar uma daquelas respostas que você morre de rir.
Me deixa pirar no seu céu da boca escancarado.
Você se joga pra trás.
E só porque você e o mundo inteiro têm certeza do quanto você é lindo, você faz questão de sempre se largar no mundo.
É a liberdade que só tem quem é infinitamente lindo ou infinitamente feio.
Você é livre do mais ou menos e isso me enche de algo que me faz querer cantar pra sua beleza.
Eu sou mais ou menos mas nesse segundo, já que comprei sua beleza, sou a mulher mais linda do mundo.
Vai, passeia no meu carrinho de supermercado.
Me deixa ser linda vestindo você.
Entra em mim e me enche da sua vida fácil.
Outro dia me peguei pensando um absurdo que me fez feliz.
É triste, mas me fez feliz.
Pensei se isso que você faz, de ficar horas comigo depois de ter ficado horas comigo.
Se isso é algum tipo de caridade sua.
Porque, veja bem.
Somos plantas e pássaros diferentes.
Eu sou a bonitinha que lê uns livros e vê uns filmes.
Você é essa força absoluta e avassaladora que jamais precisará abrir a boca para impor sua vitória.
Você coloca aquele moletom cinza com dizeres do surf e eu experimento um guarda roupas inteiro pra ficar à sua altura.
Você é essa força da natureza que deu certo.
Eu gasto metade do meu salário pra me sentir como você deve se sentir escovando os dentes.
Pra me sentir cabendo no mundo que deu certo.
Abaixa esse queixo menino.
Abaixa esse nariz.
Anda rastejando com esse chinelo verde e o queixo no alto.
Você sabe que é superior.
Você sabe que pode fazer tudo devagar, o mundo te espera.
O resto é platéia.
Você sabe que faz as pessoas tremerem a voz.
Você sabe que deixa apenas duas escolhas pras pessoas: te idolatrar ou sair correndo.
E como eu não sou mulher de correr da dor, deixo ela entrar as pouquinhos, esbugalhar meus sentidos, enfraquecer meu orgulho.
Quando vejo, estou calada novamente, ouvindo o que você não diz e vendo o que você não faz.
Apenas curtindo a limitação profunda e gigantesca da sua beleza esmagadora.
Feliz em ser uma formiga que carrega milhões de plantas nas costas só para ver algum esforço meu alimentando você.
Vai, faz o bico de burro quando alguém não compra a sua forma.
Faz os olhos laterais pra me convidar pra mais uma das suas aparições.
Faz o dentinho pra frente pra me pedir mais um pouco.
Faz o silêncio pra ganhar de vez.
De mim e do mundo.
Não existe não morrer um pouco quando você chega.
E de vez em quando tudo o que a gente quer é mesmo dar um tempo da vida.

Louca
Uma vez, no recreio, comendo um Bis derretido, pensei isso, pela primeira vez: e se eu ficasse louca
Vi minhas amigas trocando papéis de cartas, vi uns meninos correndo de testa suada, vi uma professora caminhar como alguém que pensava em alguém que ela encontraria no final do dia, vi tudo isso como se não pudesse ter, ver, ser.
E se eu ficasse louca.
Que triste para meus pais, que triste para a carteira vazia da escola, que triste para os livros plastificados com a etiqueta que dizia que era eu.
Uma estudante, uma garotinha, com família, amigos, presilhas de cabelo, camisas brancas PP com um brasão que trazia um livro e um fogo.
Se eu ficasse louca tudo isso seria o quê Pra onde iriam os materiais e as pessoas e o amor E se eu ficasse louca Quem iria me ver babar num canto de um hospital Existe louco em casa Mãe ama os loucos Louco tem amigo Louco tem livro plastificado Louco começa e não para mais até acabar Louco uma vez, louca pra sempre Converse.
Respire.
Pense em garotos.
Pense em xampus.
Vamos.
Não fique louca.
Mude de assunto.
Pense na menina mais bonita do mundo e odeie.
Dê nome pra loucura que ela deixa de ser.
Sinta dor com nome que assusta menos.
Caia na aula de educação física, rale o joelho, sangre, dói menos.
Desembarace os cabelos e sinta que problemas se alisam.
Faça o papel do Bis virar um barquinho.
Isso.
Conte uma piada.
Se os outros rirem bastante.
Se a sua estranheza puder ser amada.
Qualquer coisa menos loucura.
Pense naquela música da rádio.
Não, você não está triste.
Uma fofoca e pessoas em volta.
Vá até o banheiro retocar o batom da moranguinho.
O professor mais ou menos bonito, por ele.
Os outros.
Olhe.
Os outros.
Vamos.
Que data mesmo Da guerra.
Que data Qualquer coisa.
Menos louca.
O hino.
Sujou um pouquinho da meia.
Limpinha.
Dê nome aos problemas.
Problemas com nomes são problemas e não loucuras.
Sempre evitando que ela saia.
Sempre segurando.
Não caia dura no meio do mundo.
Não se chacoalhe no meio do pátio.
Não vomite só porque sei lá o que é isso impossível de digerir e nem quero saber.
Não abrace sem fim porque é preciso sentir o vento com o peito sozinho.
Terrível mas tem banho quente pra distrair.
Não espanque, não soque, não chore sangue, não arranque a língua, não grite, não acabe.
Siga.
Sorria.
Mais uma prova.
Mais uma festa.
Mais um garoto.
Sempre um pavor escondido mas nem era nada disso.
Sempre uma tristeza abafada mas nem era nada disso.
Sempre uma alegria exagerada que ninguém acolhe e o silêncio depois, fazendo curativos na pureza criando cascas.
Um dia você será.
O quê Normal.
Um dia você será.
Normal.
Um dia.
Enquanto isso, se distraia como a professora que ama, as crianças que trocam papéis de cartas, os garotos que correm.
Eles estão se distraindo também e pensando “olha, uma menina comendo Bis”.

Nem vinte
Ele não gosta de cinema europeu.
Não sabe o que é crème brulée, De La Guarda e nunca ouviu falar no filme "O filho da noiva".
Ele é estagiário, tem um carro cheio de apetrechos esportivos, acha Frank Sinatra um velho aí, faz questão absoluta de pagar meu almoço com ticket e, sempre que eu elogio uma roupa, um acessório ou um perfume, responde sem pudor: "Foi minha mãe que me deu."
De cada cinco palavras, uma é “irado”, outra é "bagulho" e as outras três podem ser intercaladas com "tipo assim" ou "se pá".
Se essa descrição me fosse feita há alguns meses, eu, que sempre defendi romances com experientes e articulados homens mais velhos, certamente riria e ignoraria tal existência, nem cogitando uma aproximação.
Mas o que seria da vida se o mundo não nos pregasse essas surpresas Se o mundo não desmentisse nossas verdades absolutas O mundo é divertido.
E por falar em diversão, tenho andado de volta aos meus quinze anos.
Sempre defendi, eu e minhas verdades irrefutáveis, que os homens mais velhos e blá, blá, blá, eram os melhores na arte do acasalamento.
Pois muito bem, fique com eles então, porque eu ando satisfeita demais para lembrar que eles existem.
Imaginem a minha felicidade ao ver um casal na mesa ao lado, discutindo incansavelmente a relação a dois, enquanto eu e meu menino discutíamos entre batata frita com catchup e batata frita com mostarda Sendo que eu preferia a segunda opção e ele a primeira.
Esse era o nosso conflito.
No fim acabamos misturando tudo porque, enquanto o mundo adulto pensa, a gente beija, um milhão de beijos para esquecer o mundo.
Ele tem um sorriso sem marcas, de uma doçura sem mágoas.
Ele é limpo de dores do mundo.
E ainda que isso torne a sua alegria um pouco sem profundidade, faz com que a superfície brilhe tanto que nada mais importe.
Ele anda o dia inteiro pra cá e pra lá, resolvendo seus problemas de estagiário com seu cabelo tigelinha, sua falta de pelos e o rosto mais lindo do mundo.
E eu vou junto.
O dia inteiro para lá e para cá, o dia inteiro pra frente e para trás enquanto ele vai, o dia inteiro disfarçando enquanto ele vem.
O dia inteiro desejando que ele apareça para me dar vida, e que ele desapareça para me dar ar.
Você esqueceria qualquer gíria se prestasse atenção na boca carnuda, dura e bem desenhada que as pronuncia.
Você esqueceria qualquer "não sei" se prestasse atenção em tudo que suas mãos, pernas e línguas sabem.
Você esqueceria qualquer colo maduro se prestasse atenção a quantas horas está naquele colo que nunca cansa, que nunca pára, que é tão jovem, macio e forte.
Você esqueceria qualquer acalanto intelectual se tivesse suas costas e seus cabelos acariciados por horas, por mãos leves, por intenções leves, por momentos silenciosos jamais despertados por celulares, obrigações e cobranças da vida adulta.
Quando a voz dele, que ainda não é grossa, que ainda não é firme, sussurra para mim tudo o que eu preciso ouvir para me sentir de novo com o meu corpo de dezoito anos, eu sei que aquela é a voz que minha alma precisava.
Quando ele sorri desarmado, limitado e impotente, para todas as minhas dúvidas, inconstâncias e chatices, eu sei que é daquele sorriso que minha alma precisava.
Ele não faz muito pela minha angústia existencial, até por não saber.
E consegue tudo de mim.
Consegue até o que ninguém nunca conseguiu: me deixar leve.
Sabe rir mole de bobeira Sabe dançar idiota de alegria Sabe dormir gemendo de saudade Sabe tomar banho sorrindo para a sua pele Sabe cantar bem alto para o mundo entender Sabe se achar bonita mesmo de pijama e olheiras Sabe ter ânsia de vômito segundos antes de vê lo e ter fome de mundo segundos depois de abraçá lo Sabe não agüentar Sabe sobrevoar o frio, o cinza, os medos, os erros e tudo que pode dar errado Ele consegue fazer com que eu me perdoe por apenas viver sem questionar tanto.
Eu quero parar com tudo isso, ele é um menino que não pode acompanhar minha louca linha de raciocínio meio poeta, meio neurótica, meio madura.
Eu quero colocar um fim neste tormento de desejar tanto quem ainda tem tanto para desejar por aí.
E aí eu me pergunto: pra quê Se está tão bom, se é tão simples.
Ele me ensinou que a vida pode ser simples, e tão boa.
É isso, sei que vocês vêm aqui para ler neuroses, mas estou de férias delas.
Umas férias, tipo assim, se pá, iradas.