Fio de cabelo branco
Uma noite dessas, já quase passando das tantas e meio borracho, arranhei a garganta tentando pigarrear uma palavra qualquer.
Num relance, enquanto olhava no espelho do banheiro, vi meu semblante roto refletido feito vidro partido, meio distorcido, talvez pelo sono que me acometia àquela hora.
E mesmo que tentasse fixar o olhar na imagem não via surpresas, só conseguia enxergar minha insuportável silhueta de sempre, igual a sempre.
Lá fora, um frio insuportável! Aqui dentro, um friozinho gostoso Se esquivando pelas frestas da janela, tentando incomodar.
Ainda de front ao espelho vi meu rosto, meio choco, parecendo querer desandar.
As muitas linhas emprestadas pelo tempo emolduravam no, formando uma expressão esteticamente impressionante, quase arte.
Se fosse uma vanguarda, seria Expressionista.
Aquelas formas singulares, aqueles traços ousados, aquele fio de cabelo branco Aquele fio de cabelo, branco Em minha opinião, quase uma instalação contemporânea, tamanho meu espanto.
Era tudo que tinha de diferente na minha face naquele dia, naquela noite, há anos.
Já se passava em muito da meia noite quando me deitei.
Ainda pensava naquele fio de cabelo branco que trazia na face, talvez um disfarce do tempo para encobrir os meus tantos lamentos durante toda a vida.
Talvez uma lágrima solitária derramada e petrificada ali, no canto esquerdo do rosto transformada em monumento, um totem erguido à minha maturidade.
Talvez fosse isso mesmo, talvez não!
Nunca soube o porque daquele fio de cabelo branco.
Nunca tive um ciso se quer, nunca me casei, nunca tive filhos, nunca plantei uma árvore, moro com a minha mãe até hoje, deixo a cama desarrumada pra hora de deitar e provoco o cachorro só pra ver ele se zangar.
Sem falar que até ontem soltava pipa e papagaio na rua feito moleque, um crianção.
E agora com esse fio de cabelo branco, muda tudo! Será o fim Será que será bom ou será que será ruim