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Escrever

Tecnologia
Para começar, ele nos olha nos olha na cara.
Não é como a máquina de escrever, que a gente olha de cima, com superioridade.
Com ele é olho no olho ou tela no olho.
Ele nos desafia.
Parece estar dizendo: vamos lá, seu desprezível pré eletrônico, mostre o que você sabe fazer.
A máquina de escrever faz tudo que você manda, mesmo que seja a tapa.
Com o computador é diferente.
Você faz tudo que ele manda.
Ou precisa fazer tudo ao modo dele, senão ele não aceita.
Simplesmente ignora você.
Mas se apenas ignorasse ainda seria suportável.
Ele responde.
Repreende.
Corrige.
Uma tela vazia, muda, nenhuma reação aos nossos comandos digitais, tudo bem.
Quer dizer, você se sente como aquele cara que cantou a secretária eletrônica.
É um vexame privado.
Mas quando você o manda fazer alguma coisa, mas manda errado, ele diz “Errado”.
Não diz “Burro”, mas está implícito.
É pior, muito pior.
Às vezes, quando a gente erra, ele faz “bip”.
Assim, para todo mundo ouvir.
Comecei a usar o computador na redação do jornal e volta e meia errava.
E lá vinha ele: “Bip! ” “Olha aqui, pessoal: ele errou.” “O burro errou! ”
Outra coisa: ele é mais inteligente que você.
Sabe muito mais coisa e não tem nenhum pudor em dizer que sabe.
Esse negócio de que qualquer máquina só é tão inteligente quanto quem a usa não vale com ele.
Está subentendido, nas suas relações com o computador, que você jamais aproveitará metade das coisas que ele tem para oferecer.
Que ele só desenvolverá todo o seu potencial quando outro igual a ele o estiver programando.
A máquina de escrever podia ter recursos que você nunca usaria, mas não tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só agüentava os humanos por falta de coisa melhor, no momento.
E a máquina, mesmo nos seus instantes de maior impaciência conosco, jamais faria “bip” em público.
Dito isto, é preciso dizer também que quem provou pela primeira vez suas letrinhas dificilmente voltará à máquina de escrever sem a sensação de que está desembarcando de uma Mercedes e voltando à carroça.
Está certo, jamais teremos com ele a mesma confortável cumplicidade que tínhamos com a velha máquina.
É outro tipo de relacionamento, mais formal e exigente.
Mas é fascinante.
Agora compreendo o entusiasmo de gente como Millôr Fernandes e Fernando Sabino, que dividem a sua vida profissional em antes dele e depois dele.
Sinto falta do papel e da fiel Bic, sempre pronta a inserir entre uma linha e outra a palavra que faltou na hora, e que nele foi substituída por um botão, que, além de mais rápido, jamais nos sujará os dedos, mas acho que estou sucumbindo.
Sei que nunca seremos íntimos, mesmo porque ele não ia querer se rebaixar a ser meu amigo, mas retiro tudo o que pensei sobre ele.
Claro que você pode concluir que eu só estou querendo agradá lo, precavidamente, mas juro que é sincero.
Quando saí da redação do jornal depois de usar o computador pela primeira vez, cheguei em casa e bati na minha máquina.
Sabendo que ela agüentaria sem reclamar, como sempre, a pobrezinha.

Eu não sou daqui
Qualquer pessoa que comece a escrever poesia irá, cedo ou tarde, usar como tema a sensação de ser um estrangeiro.
Em seus versos, dirá que não pensa como os outros, que tem a impressão de ter vindo de outro planeta, que não se reconhece entre seus pares.
Quem faz música também acaba falando sobre isso, mais dia, menos dia.
É um assunto que cativa, já que todos nós, em um determinado momento da vida (geralmente na adolescência) nos achamos, mesmo, muito diferente dos outros.
O psicanalista Contardo Calligaris, em sua recente palestra em Porto Alegre, no Fronteiras do Pensamento, disse que, quando garoto, tinha certeza de que os marcianos viriam buscá lo em seu quarto, já que se sentia mais sintonizado com eles do que com sua própria família.
Não é exatamente uma novidade: o “eu não sou daqui” já foi frase recorrente na nossa cabeça.
E sejamos sinceros: alguns seguem pensando assim até o fim dos dias.
Contardo explica que, na puberdade, temos necessidade de fugir das nossas origens para que possamos criar uma identidade própria.
E que essa identidade nunca é lógica, ao contrário, é sempre embaralhada, por isso a importância de a gente, ao longo dos anos, aprender não só a viver bem, mas a contar bem a nossa história para os outros.
Aliás, o título da palestra era: A Ficção Como Linha de Conduta Para Inventar a Vida.
Quando ele diz que somos todos ficcionistas, não está sugerindo que somos todos uns fingidos.
O que eu compreendo disso é que, ao nascer, recebemos mais ou menos o mesmo dote: uma família, algum amor e alguns ensinamentos.
Para quem é um pouco preguiçoso ou carente de imaginação, isso basta como baliza.
Irá se satisfazer com o que foi recebido e contar sempre a mesma história sobre si mesmo.
Mas há os desassossegados de nascença: louvados sejam.
Para esses, a vida é um livro em branco, uma oportunidade desafiadora de criar o seu próprio personagem e enriquecê lo com experiências, desejos, erros, acertos, alegrias, tristezas.
Qual é o maior presente que nossos pais podem nos dar, além de algum amor e algum ensinamento É justamente essa fagulha acesa no olhar, esse espírito aberto, o empurrão para ir além do “prefácio” e buscar a construção de si próprio visitando outras galáxias – que nada mais são do que outras pessoas e vivências.
É através dessa matéria prima que iremos estabelecer o fio da nossa narrativa, é que permitiremos que os outros nos conheçam – e que a gente se autoconheça mais um pouco também, através do olhar de fora.
É uma vida inventada No melhor sentido.
É uma vida que se atreveu a ir além dos 10 mandamentos iniciais.
É uma vida regida por outros tantos: não julgarás os diferentes de ti, não criticarás o próximo sem antes ouvir suas razões, não te contentarás com o que aprendestes em casa, não evitarás estradas só por não saber onde elas levam, não abdicarás de conhecer mais a ti mesmo, não censurarás aquilo que não compreendes, não te acorrentarás ao que te dá segurança, não te conformarás com tua ignorância, não temerás a amplificação do teu universo.
Em suma, o “eu não sou daqui” é a frase dos que não se atreveram a desbravar o mundo, preferiram se manter estrangeiros por orgulho e por medo.
Só quando saímos do nosso esconderijo é que descobrimos que somos todos do mesmo lugar.