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Lya Luft

Os filhos do lixo
"Gravei a tristeza, a resignação, a imagem das crianças minúsculas
e seminuas, contentes comendo lixo.
Sentadas sobre o lixo.
Uma cuidando do irmãozinho menor, que escalava a montanha
de lixo.
Criadas, como suas mães, acreditando que Deus queria isso"
Há quem diga que dou esperança; há quem proteste que sou pessimista.
Eu digo que os maiores otimistas são aqueles que, apesar do que vivem ou observam, continuam apostando na vida, trabalhando, cultivando afetos e tendo projetos.
Às vezes, porém, escrevo com dor.
Como hoje.Acabo de assistir a uma reportagem sobre crianças do Brasil que vivem do lixo.
Digamos que são o lixo deste país, e nós permitimos ou criamos isso.
Eu mesma já vi com estes olhos gente morando junto de lixões, e crianças disputando com urubus pedaços de comida estragada para matar a fome.A reportagem era uma história de terror – mas verdadeira, nossa, deste país.
Uma jovem de menos de 20 anos trazia numa carretinha feita de madeiras velhas seus três filhos, de 4, 2 e 1 ano.
Chegavam ao lixão, e a maiorzinha, já treinada, saía a catar coisas úteis, sobretudo comida.
Logo estavam os três comendo, e a mãe, indagada, explicou com simplicidade: "A gente tem de sobreviver, né ".
O relato dessa quase adolescente e o de outras eram parecidos: todas com filhos pequenos, duas novamente grávidas e, como diziam, vivendo a sua sina – como sua mãe, e sua avó, antes delas.
Uma chorou, dizendo que tinha estudado até a 8ª série, mas então precisou ajudar em casa e foi catar lixo, como outras mulheres da família.
"Minha sina", repetiu, e olhou a filha que amamentava.
"E essa aí ", perguntou a jornalista.
"Essa aí, bom, depende, tomara que não, mas Deus é quem sabe.
Se Ele quiser "Os diálogos foram mais ou menos assim; repito de memória, não gravei.
Mas gravei a tristeza, a resignação, a imagem das crianças minúsculas e seminuas, contentes comendo lixo.
Sentadas sobre o lixo.
Uma cuidando do irmãozinho menor, que escalava a montanha de lixo.
Criadas, como suas mães, acreditando que Deus queria isso.
Não sei como é possível alguém dizer que este país vai bem enquanto esses fatos, e outros semelhantes, acontecem.
Pois, sendo na nossa pátria, não importa em que recanto for, tudo nos diz respeito, como nos dizem respeito a malandragem e a roubalheira, a mentira e a impunidade e o falso ufanismo.
Ouvimos a toda hora que nunca o país esteve tão bem.
Até que em algumas coisas, talvez muitas, melhoramos.
Temos vacinas.
Existem hospitais e ensino públicos – ainda que atrasados e ruins.
Temos alguns benefícios, como aposentadoria – embora miserável –, e estabilidade econômica aparente.
Andamos um pouco mais bem equipados do que 100 anos atrás.Mas quem somos, afinal Que país somos, que gente nos tornamos, se vemos tudo isso e continuamos comendo, bebendo, trabalhando e estudando como se nem fosse conosco Deve ser o nosso jeito de sobreviver – não comendo lixo concreto, mas engolindo esse lixo moral e fingindo que está tudo bem.
Pois, se nos convencermos de que isso acontece no nosso meio, no nosso país, talvez na nossa cidade, e nos sentirmos parte disso, responsáveis por isso, o que se poderia fazer Pelo menos, reclamar.
Achar que nem tudo está maravilhoso.
Procurar eleger pessoas de bem, interessadas, que cuidassem dos lixões, dos pobrezinhos, da saúde pública, dos leitos que faltam aos milhares, dos colégios desprovidos, de tudo isso que cansativa mas incansavelmente tantos de nós têm dito e escrito.
Que pelo menos a gente saiba e, em vez de disfarçar, espalhe.
Não para criar hostilidade e desordem, mas para mudar um pouquinho essa mentalidade.
Nunca mais crianças brasileiras sendo filhas do lixo, nem mães dizendo que aquela é a sua sina, porque Deus quer assim.
Deus não quer assim.
Os deuses não inventaram a indiferença, a crueldade, o mal causado pelo homem.
Nem mandaram desviar o olhar para não ver o menino metendo avidamente na boca restos de um bolo mofado, talvez sua única refeição do dia.
E, naquele instante, a câmera captou sua irmãzinha num grande sorriso inocente atrás de um par de óculos cor de rosa que acabara de encontrar: e assim se iluminou por um breve instante aquela imensa, trágica realidade.

CANÇÃO DOS HOMENS
Que quando chego do trabalho ela largue por um instante o que estiver fazendo
filho, panela ou computador e venha me dar um beijo como os de antigamente.
Que quando nos sentarmos à mesa para jantar
ela não desfie a ladainha dos seus dissabores domésticos.
E se for uma profissional, que divida comigo o tempo de comentarmos nosso dia.
Que se estou cansado demais para fazer amor,
ela não ironize nem diga que "até que durou muito" o meu desejo ou potência.
Que quando quero fazer amor ela não se recuse demasiadas vezes, nem fique impaciente ou rígida, mas cálida como foi anos atrás.
Que não tire nosso bebê dos meus braços dizendo que homem não tem jeito pra isso, ou que não sei segurar a cabecinha dele, mas me ensine docemente se eu não souber.
Que ela nunca se interponha entre mim e as crianças, mas sirva de ponte entre nós quando me distancio ou me distraio demais.
Que ela não me humilhe porque estou ficando calvo ou barrigudo, nem comente nossas intimidades com as amigas, como tantas mulheres fazem.
Que quando conto uma piada para ela ou na frente de outros, ela não faça um gesto de enfado dizendo "Essa você já me contou umas mil vezes".
Que ela consiga perceber quando estou preocupado com trabalho, e seja calmamente carinhosa, sem me pressionar para relatar tudo, nem suspeitar de que já não gosto dela.
Que quando preciso ficar um pouco quieto ela não insista o tempo todo para que eu fale ou a escute, como se silêncio fosse falta de amor.
Que quando estou com pouco dinheiro ela não me acuse de ter desperdiçado com bobagens em lugar de prover minha família.
Que quando eu saio para o trabalho de manhã ela se despeça com alegria, sabendo que mesmo de longe eu continuo pensando nela.
Que quando estou trabalhando ela não telefone a toda hora para cobrar alguma coisa que esqueci de fazer ou não tive tempo.
Que não se insinue com minha secretária ou colega para descobrir se tenho amante.
Que com ela eu também possa ter momentos de fraqueza e de ternura, me desarmar, me desnudar de alma, sem medo de ser criticado ou censurado: que ela seja minha parceira, não minha dependente nem meu juiz.
Que cuide um pouco de mim como minha mulher, mas não como se eu fosse uma criança tola e ela a mãe, a mãe onipotente, que não me transforme em filho.
Que mesmo com o tempo, os trabalhos, os sofrimentos e o peso do cotidiano, ela não perca o jeito terno e divertido que tanto me encantou quando a vi pela primeira vez.
Que eu não sinta que me tornei desinteressante ou banal para ela, como se só os filhos e as vizinhas merecessem sua atenção e alegria.
E que se erro, falho, esqueço, me distancio, me fecho demais, ou a machuco consciente ou inconscientemente,
Ela saiba me chamar de volta com aquela ternura que só nela eu descobri, e desejei que não se perdesse nunca, mas me contagiasse e me tornasse mais feliz, menos solitário, e muito mais humano.