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Álvaro de Campos

Acordar
Acordar da cidade de Lisboa, mais tarde do que as outras,
Acordar da Rua do Ouro,
Acordar do Rocio, às portas dos cafés,
Acordar
E no meio de tudo a gare, que nunca dorme,
Como um coração que tem que pulsar através da vigília e do sono.
Toda a manhã que raia, raia sempre no mesmo lugar,
Não há manhãs sobre cidades, ou manhãs sobre o campo.
À hora em que o dia raia, em que a luz estremece a erguer se
Todos os lugares são o mesmo lugar, todas as terras são a mesma,
E é eterna e de todos os lugares a frescura que sobe por tudo.
Uma espiritualidade feita com a nossa própria carne,
Um alívio de viver de que o nosso corpo partilha,
Um entusiasmo por o dia que vai vir, uma alegria por o que pode acontecer de bom,
São os sentimentos que nascem de estar olhando para a madrugada,
Seja ela a leve senhora dos cumes dos montes,
Seja ela a invasora lenta das ruas das cidades que vão leste oeste,
Seja
A mulher que chora baixinho
Entre o ruído da multidão em vivas
O vendedor de ruas, que tem um pregão esquisito,
Cheio de individualidade para quem repara
O arcanjo isolado, escultura numa catedral,
Siringe fugindo aos braços estendidos de Pã,
Tudo isto tende para o mesmo centro,
Busca encontrar se e fundir se
Na minha alma.
Eu adoro todas as coisas
E o meu coração é um albergue aberto toda a noite.
Tenho pela vida um interesse ávido
Que busca compreendê la sentindo a muito.
Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo,
Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas,
Para aumentar com isso a minha personalidade.
Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio
E a minha ambição era trazer o universo ao colo
Como uma criança a quem a ama beija.
Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras,
Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo
Do que as que vi ou verei.
Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações.
A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos.
Penso nisto, enterneço me mas não sossego nunca.
Dá me lírios, lírios
E rosas também.
Dá me rosas, rosas,
E lírios também,
Crisântemos, dálias,
Violetas, e os girassóis
Acima de todas as flores
Deita me as mancheias,
Por cima da alma,
Dá me rosas, rosas,
E lírios também
Meu coração chora
Na sombra dos parques,
Não tem quem o console
Verdadeiramente,
Exceto a própria sombra dos parques
Entrando me na alma,
Através do pranto.
Dá me rosas, rosas,
E llrios também
Minha dor é velha
Como um frasco de essência cheio de pó.
Minha dor é inútil
Como uma gaiola numa terra onde não há aves,
E minha dor é silenciosa e triste
Como a parte da praia onde o mar não chega.
Chego às janelas
Dos palác ios arruinados
E cismo de dentro para fora
Para me consolar do presente.
Dá me rosas, rosas,
E lírios também
Mas por mais rosas e lírios que me dês,
Eu nunca acharei que a vida é bastante.
Faltar me á sempre qualquer coisa,
Sobrar me á sempre de que desejar,
Como um palco deserto.
Por isso, não te importes com o que eu penso,
E muito embora o que eu te peça
Te pareça que não quer dizer nada,
Minha pobre criança tísica,
Dá me das tuas rosas e dos teus lírios,
Dá me rosas, rosas,
E lírios também..

LÀ BAS, JE NE SAIS OÙ
Véspera de viagem, campainha
Não me sobreavisem estridentemente!
Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de pôr no estribo um pé
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir.
Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela
Que importa Todo o universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.
Sabe me a náusea próxima o cigarro.
O comboio já partiu da outra estação
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir se de mim,
Minha família abstracta e impossível
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida
«E esta Então não houve um tipo que deixou isto aqui »
Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos
Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim
Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê se dizem que tenho vivido no estrangeiro.
Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.
E a mão com que pego na mala treme me e a ela.
Partir!
Nunca voltarei.
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.
Partir! Meus Deus, partir! Tenho medo de partir!

Insônia
Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos
Tantos versos
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo sei lá salvo o quê
Não durmo.
Não durmo.
Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó madrugada, tardas tanto Vem
Vem, inutilmente,
Trazer me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta
Vem trazer me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!
Que horas são Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente.
Mas não durmo.