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Ana Jácomo

Armadilhas
Vamos combinar que muitas vezes não há mistério algum, vilão algum, nenhuma influência sobrenatural, questão de sorte.
A gente sabe que se tocar naquele fio desencapado é choque garantido, como da última vez, mas a gente toca.
A gente sabe que certos adubos são infalíveis para fazer a nossa dor crescer, mas a gente aduba.
A gente sabe os tons emocionais que desarmonizam a pintura da tela de cada dia, mas a gente escolhe exatamente esses para pintar, mesmo dispondo de outros tantos na nossa caixa de lápis de cor.
A gente sabe a medida do tempero e a desmedida, como sabe o sabor resultante de cada uma.
Por histórico, a gente sabe a resposta muito antes de refazer a pergunta, mas a gente refaz.
Vamos combinar que muitas vezes não há nada de tão imprevisível, de tão inimaginável, muito menos entrelinhas, muito menos mau olhado.
A gente sabe, por memória das andanças, para onde a estrada de certos gestos nos leva, mas a gente segue.
A gente sabe no que dá mexer em casa de marimbondo, mas a gente mexe.
A gente sabe que não vai receber o que espera, mas a gente oferta sempre pela penúltima vez.
A gente sabe que algumas praias são traiçoeiras, que não sabemos sequer nadar direito, que o afogamento é a coisa mais provável de todas, mas a gente mergulha.
A gente sabe que a realidade, por mais dura que seja, precisa ser encarada com os olhos mais abertos do mundo, mas a gente inventa todo jeito que pode para desviar o olhar.
Vamos combinar que muitas vezes não há segredo algum, inimigo algum, interrogação alguma, nenhuma entidade obsessora além da nossa autosabotagem.
A gente sabe que esticar a corda costuma encolher o coração, mas a gente estica.
A gente sabe que nos trechos de inverno é necessário se agasalhar, mas a gente se expõe à friagem.
A gente sabe que não pode mudar ninguém, que só podemos promover mudanças na nossa própria vida, mas a gente age como se esquecesse completamente dessa percepção tão sincera.
A gente lembra os lugares de dor mais aguda onde já esteve e como foi difícil sair deles, mas, diante de circunstâncias de cheiro familiar, a gente teima em não aceitar o óbvio, em não se render ao fluxo, em não respeitar o próprio cansaço.