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Marina Colasanti

Um diário é um amigo Uma companhia Também.
Mas é sobretudo a duplicação da gente mesmo, espelho que não se apaga quando o rosto se retrai ou muda, álbum de retratos que conserva muito mais que um belo sorriso e a paisagem de fundo.
Quieto, compreensivo, calmo, o diário está ali, aberto e limpo.
Oferecendo seu espaço, no qual você vai desenhar a sua vida e ele apenas receber.
Ele não tem recriminações a fazer, ele não diz que a culpa é sua, ele não encosta dedos na ferida.
Como uma cama, como um mar, ele recebe.
Você escreve muito se a emoção é forte, vai e volta e repete e repisa o mesmo assunto.
Ninguém conta seu tempo, ninguém conta suas páginas.
Você pode escrever até a mão cansar, até a alma aliviar.
Você pode escrever e escrever e escrever.
Ele aceita.
E quando não quiser escrever mais, é só fechar e guardar o diário que ele mais nada exigirá.
Não me diga que não tem o que contar.
Você é o centro do seu universo, nada é mais importante do que aquilo que lhe diz respeito.
Isso é que faz o encanto do diário.
Se fosse usado apenas para registrar a queda do governo ou a evolução dos projetos orbitais, seria desnecessário, porque para isso já existe a imprensa, os arquivos, os registros da memória nacional.
O diário serve justamente para conservar o pequeno acidente humano e individual, sua discussão com um amigo, o namoro lancinante, a dúvida sobre a roupa para usar naquela festa O diário serve para conservar você.
(Marina Colasanti)

Crianças em qualquer tempo
Quando penso em crianças do terceiro milênio, as vejo ainda maturadas num ventre de mulher, apesar das novas possibilidades com que o futuro nos acena [ ]
As maneiras através das quais essas crianças aprenderão a ler e escrever não tem, para mim, importância maior.
Que seja num caderno ou num computador, diante de uma mesa ou graças a um sofisticado equipamento de pulso, o que eu vejo são seres em crescimento abrindo os olhos maravilhados sobre o saber.
O universo socioeconômico de uma criança amazônica criada à beira do Rio Negro, que em dia de festa come pato em vez de galinha, porque galinhas não nadam e há muito mais água do que terra ao redor das casas dos Igarapés é bem diferente daquele de uma criança de São Paulo, levada no inverno, duas vezes por mês ao médico para fazer nebulizações capazes de minimizar em seus pulmões o efeito da poluição.
Essas diferenças existem hoje e existirão ainda que de outras formas, no terceiro milênio.
Mas hoje como amanhã, as duas crianças terão medo do escuro [ ]
As crianças do terceiro milênio, quando penso nelas, são frágeis e bonitas.
O que vestem se linho ou plástico, não me interessa.
Me interessa que possam ser de todas as cores, louras e morenas, de olhos puxados ou lábios grossos, de cabelos escorridos ou pixaim, e que assim possam viver, multirraciais, no mesmo bairro.
Confesso que me enternece a idéia de que, pelo menos no início dessa nova era ainda haverá avós que ensinarão suas netas a costurar roupinhas de boneca.
Mas tenho certeza de que mesmo que no futuro venhamos a nos alimentar somente de pílulas, haverá crianças fazendo pílulas de barro ou de cola sintética para brincar de comida de mentirinha, assim como brincaram as crianças da Roma clássica ou as do antigo Egito.
E isso não porque a brincadeira de comidinha seja uma tradição transmitida de geração em geração, mas porque através da mimese se faz o aprendizado e a primeira tarefa de todas as crianças em qualquer tempo e em qualquer lugar, é, e sempre será, aprender a viver.