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Caio Fernando Abreu

Não me aproximo porque, veja bem, sabe lá quem habita a tua solidão.
Hesito.
Recuo.
Me afasto tristíssima.
E te imagino em poses e sorrisos, voz grave e cabelos desgrenhados, preso nas minhas fantasias mais loucas e movimentadas.
Numa delas sou um bichinho invisível, com asas, que adentra tua casa e te observa em segredo.
Faço o contorno do teu corpo todo com os olhos, parada contra a parede do teu quarto, imóvel, enquanto tu te atiras na cama.
Cansado.
Tu olhas para o teto imaginando mil coisas, memórias, compromissos, desejos, saudades.
Te fito com dor.
A luz do abajur faz sombra na tua pilha de livros, que folheei um dia e quis pedir emprestado mesmo sabendo que não havia intimidade para pedidos.
Por razões que desconheço, nossas aproximações foram sempre pela metade.
Interrompidas.
Um passo para a frente e cem para trás.
Retrocessos.
Descaminhos.
Procuro sinais de algum amor teu.
Vestígios de noites passadas.
Tu não me vês, estou incógnita a te observar.
Como sempre estive, olhando pelas janelas, de longe, coração apertado.
Nós poderíamos ser amigos e trocar confidências.
Assistiríamos a filmes, taça de vinho nas mãos, e tu me detalharias as tuas paixões e desatinos.
Nós poderíamos ser amantes que bebem champanhe pela manhã aos beijos num hotel em Paris.
Caminharíamos pela beira do Sena, e eu te olharia atenta, numa tentativa indisfarçável de gravar o momento e guardá lo comigo até o fim dos meus dias.
Ou poderíamos ser apenas o que somos, duas pessoas com uma ligação estranha, sutilezas e asperezas subentendidas, possibilidades de surpresas boas.
Ou não.
Difícil saber.
Bato minhas asas em retirada.
Tu dormes, e nos teus sonhos mais secretos, não posso entrar.
Embora queira.
À distância, permaneço te contemplando.
E me pergunto se, quem sabe um dia, na hora certa, nosso encontro pode acontecer inteiro.
Porque tu és o único que habita a minha solidão.