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Tati Bernardi

CORAGEM
Se meu coração não se emociona mais com a presença dele, fiquei me perguntando o que eu estava fazendo ali.
Se não sonho mais, não planejo mais, não desejo mais, não espero mais nada, o que eu estava fazendo ali
Não te amo mais, queria dizer a ele, pela primeira vez, sem esperar que ele sofresse com isso.
Sempre quis que ele sofresse com esse dia.
Mas justamente porque eu não o amo mais, nem quero mais que ele sofra.
Aliás, não quero mais nada.
Só ir embora.
Claro que sobrou um carinho, uma amizade, uma graça.
Mas tudo aquilo que era gigantesco, tudo aquilo que parecia ser maior do que eu mesma, que me soterrava, que me transportava pra outra realidade tinha acabado.
Então, por quê
Quero namorar esse homem Não.
Quero casar, ter filhos, envelhecer ao lado dele Não mais.
Nunca mais.
Quero dormir com ele, ainda que daquele jeito errado em que minha solidão procura um abraço e a solidão dele procura sei lá eu o quê Não.
Quero reviver uma memória pra me sentir viva, emprestar uma alegria pura do passado Não, tô fora de continuar sempre no mesmo lugar, me roubando minhas próprias histórias.
Quero lamentar a falta de um beijo inteiro, um abraço de verdade, um carinho sem medo e uma atenção entregue sem nenhum egoísmo Não.
Não quero mais mudar ou fantasiar ninguém.
Deixa o mundo ser como é.
Deixa ele ser como ele é.
O que eu queria, que era jogar uma conversa fora com uma pessoa que me conhece tão bem e há tantos anos, eu já tinha conseguido.
Matar o tempo, rir da alma.
E só.
Coisa de no máximo uma hora.
Mas eu já estava lá há duas.
Quando ele finalmente parou de falar e a minha cabeça parou de gritar, o silêncio me contou um segredo que há muito tempo eu já desconfiava: é preciso coragem pra sair do automático.
Quando minha mãe briga comigo, mesmo ela sendo uma senhorinha fofa e eu tendo o dobro do tamanho dela, sinto uma espécie de medo descabido e antigo, como se eu ainda fosse aquele menininha de maria chiquinha.
É o sininho do Pavlov, que fazia o cachorro babar por comida mesmo que não estivesse mais com fome.
A mente é automática, viciada, comandada, acostumada.
Quando entro em um avião, mesmo eu tendo mais de trinta anos nas costas e milhas acumuladas de muitas viagens, minha mente insiste em me mandar lembranças da mesma menina de maria chiquinha, que tinha medo de ficar longe da mãe, que passava mal longe de casa, que odiava lugares fechados e altos.
E é por isso que quando ele, a pessoa que eu mais amei no mundo (amei sem os bloqueios e sem a amargura que veio depois de tanto amor) me pede pra ficar, eu fico.
Se alguma química do meu cérebro obedeceu aquela voz por anos, por que haveria de parar de obedecer agora
Mas ontem, quando finalmente peguei minha bolsa e fui embora, senti um alivio imenso e novo.
E combinei que meus pensamentos condicionados não mandam mais nada.
Nadinha.
Chega de ser comandada pela parte mais sem alma da minha existência.
Ainda que encarar um coração vazio seja mais assustador do que obedecer à velhos padrões, o prazer da coragem é sempre muito maior que qualquer susto.