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Álvaro de Campos

A Casa Branca Nau Preta
Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou se
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim
Há uma interrupção lateral na minha consciência
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma
Quem dera que houvesse
Um terceiro estado pra alma, se ela tiver só dois
Um quarto estado pra alma, se são três os que ela tem
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói me por detrás das costas da minha consciência de sentir
As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho
Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,
Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê las,
Não poder eu fazer qualquer coisa gênero haver árvores que deixasse de doer,
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar vos vendo do lado de cá.
E poder levantar me desta poltrona deixando os sonhos no chão
Que sonhos Eu não sei se sonhei Que naus partiram, para onde
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteira
Naus partem naus não, barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida
Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer
Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir
Não há, substância de pensamento na matéria de alma com que penso
Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda agora, e eu.
Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe
A casa branca distante onde mora Fecho o olhar
E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.
E eu, parado, mole, adormecido,
Tenho o mar embalando me e sofro
Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.
As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico
E o mar entra por os meus olhos o pórtico cessando.
Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá
Úmida sombra nos sons do tanque noturna sem lua, as rãs rangem,
Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.
Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os atos,
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,
E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas
A casa branca nau preta
Felicidade na Austrália

LÀ BAS, JE NE SAIS OÙ
Véspera de viagem, campainha
Não me sobreavisem estridentemente!
Quero gozar o repouso da gare da alma que tenho
Antes de ver avançar para mim a chegada de ferro
Do comboio definitivo,
Antes de sentir a partida verdadeira nas goelas do estômago,
Antes de pôr no estribo um pé
Que nunca aprendeu a não ter emoção sempre que teve que partir.
Quero, neste momento, fumando no apeadeiro de hoje,
Estar ainda um bocado agarrado à velha vida.
Vida inútil, que era melhor deixar, que é uma cela
Que importa Todo o universo é uma cela, e o estar preso não tem que ver com o tamanho da cela.
Sabe me a náusea próxima o cigarro.
O comboio já partiu da outra estação
Adeus, adeus, adeus, toda a gente que não veio despedir se de mim,
Minha família abstracta e impossível
Adeus dia de hoje, adeus apeadeiro de hoje, adeus vida, adeus vida!
Ficar como um volume rotulado esquecido,
Ao canto do resguardo de passageiros do outro lado da linha.
Ser encontrado pelo guarda casual depois da partida
«E esta Então não houve um tipo que deixou isto aqui »
Ficar só a pensar em partir,
Ficar e ter razão,
Ficar e morrer menos
Vou para o futuro como para um exame difícil.
Se o comboio nunca chegasse e Deus tivesse pena de mim
Já me vejo na estação até aqui simples metáfora.
Sou uma pessoa perfeitamente apresentável.
Vê se dizem que tenho vivido no estrangeiro.
Os meus modos são de homem educado, evidentemente.
Pego na mala, rejeitando o moço, como a um vício vil.
E a mão com que pego na mala treme me e a ela.
Partir!
Nunca voltarei.
Nunca voltarei porque nunca se volta.
O lugar a que se volta é sempre outro,
A gare a que se volta é outra.
Já não está a mesma gente, nem a mesma luz, nem a mesma filosofia.
Partir! Meus Deus, partir! Tenho medo de partir!

Insônia
Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.
Espera me uma insônia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.
Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!
Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!
Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.
Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.
Estou escrevendo versos realmente simpáticos
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos
Tantos versos
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!
Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstração de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo sei lá salvo o quê
Não durmo.
Não durmo.
Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo exceto no poder dormir!
Ó madrugada, tardas tanto Vem
Vem, inutilmente,
Trazer me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta
Vem trazer me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.
Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!
Que horas são Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.
Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exatamente.
Mas não durmo.