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Caio Fernando Abreu

DIVAGAÇÕES NA BOCA DA URNA (Pequenas Epifanias)
Política é exercício de poder, poder é o exercício do desprezível.
Desprezível é tudo aquilo que não colabora para o enriquecimento do humano, mas para a sua (ainda) maior degradação.
Como se fosse possível.
Pior é que sempre é.
Ah, a grande náusea desses jeitos errados que os homens inventaram para distrair se da medonha idéia insuportável de que vão morrer, de que Deus talvez não exista, de que procura se o amor da mesma forma que Aguirre procurava o Eldorado: inutilmente.
Porque você no fundo sabe tão bem quanto eu que, enquanto a jangada precária gira no redemoinho, invadida pelos macacos enlouquecidos, e você gira sozinho dentro da jangada, ao lado da filha morta com quem daria início à primeira dinastia mesmo assim: com a mão estendida sobre o rio, você julgará ver refletido no lodo das águas o brilho mentiroso das torres de Eldorado.
E há também aquela outra política que os homens exercitam entre si.
Uma outra espécie de política ainda menor, ainda mais suja, quando o ego de um tenta sobrepor se ao ego do outro.
Quando o último argumento desse um contra aquele outro é: sou eu que mando aqui.
Ah, a grande náusea por esses pequenos poderosos, que ferem e traem e mentem em nome da manutenção de seu ego imensamente medíocre.
Porque sem ferir, nem trair, nem mentir, tudo cairia por terra num estalar de dedos.
Eu faço assim clack! e você desmonta.
Eu faço assim clack! e você desaparece.
Mas você não desmonta nem desaparece: você é que manda, essa ilusão de poder te mantém.
Só que você não existe, como não existe nem importa esse mundo onde você se julga senhor, O outro lado, o outro papo, o outro nível esses, meu caro, você nunca vai saber sequer que existem.
Essa a nossa vingança, sem o menor esforço.
Mais nítido, no entanto, que as ruas sujas de cartazes e panfletos, resta um hexagrama das cores do arco íris suspenso no centro daquele céu ao fundo da rua que vai dar no mar.
É o único rosto vivo em volta, nunca me engano.
Chega devagar, pede licença, sorri, pergunta: “E você acha que aqui também é um deserto de almas ” Não preciso nem olhar em volta para dizer que sim, aqui também.
E os desertos, você sabe sabe não param nunca de crescer.
Ah, esses vastos desertos em torno das margens do rio lodoso e tão árido que é incapaz de fertilizá las.
Da barca girando no centro do redemoinho, se você estender a mão sobre as águas escuras e erguer bem a cabeça para olhar ao longe, julgará ver as árvores, além do deserto que circunda o rio.
Entre os galhos dessas árvores, macacos tão enlouquecidos quanto aqueles que invadem tua precária jangada, pobre Aguirre, batem se os humanos perdidos em seus pequenos jogos que supõem grandes.
Para sobrepor se ao ego dos outros, para repetir: sou eu que mando aqui.
Para fingir que a morte não existe, e Deus e o amor sim.
Pulando de galho em galho, com seus gestos obscenos e gritinhos histéricos, querendo que enlouqueças também.
Os dentes arreganhados, os macacos exercitam o poder.
Exercitam o desprezível nos escombros da jangada que gira e gira e gira em torno de si mesma, sempre no mesmo ponto inútil, em direção a coisa alguma, enquanto o tempo passa e tudo vira nada.
Do meu apartamento no milésimo andar, bem no centro da ilha de Java, levanto ao máximo o volume do som para que o agudo solo da guitarra mais heavy arrebente todos os tímpanos, inclusive os meus.
O Estado de S.
Paulo