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Tati Bernardi Textos

Zelador
No domingo veio o Gustavo.
Esse eu confesso que não é o que se pode chamar de irmãozinho, ainda que a gente já tenha tomado muitos banhos juntos.
Mas olha, seu Zé, que menino mais fofo: veio me trazer um presente.
Uma luminária super bonita, dessas de chão.
Você não acha que ele mereceu aquele beijo que eu dei nele no elevador Eu sei que o senhor viu, sei bem.
E sei também que o senhor viu que não foi bem um beijinho inocente.
Mas ele não merece Um presente bacana desses, veja só! O senhor entende, né
Na terça tava um silêncio danado na rua, a maior paz.
E eu sei que acordei o senhor.
O senhor tava lá dormindo escondidinho na guarita, não tava E eu no interfone desesperada pra subir logo.
Mas o senhor logo entendeu meu desespero, não foi Não vou enganar o senhor não, pra esse eu dei mais do que um beijo safado no elevador e uma mordiscada irmã no braço.
Pra esse eu dei banho e fiz até torrada no café da manhã.
O senhor viu como ele era bonito Nossa.
Ah, o senhor reparou também que ele é bem mais novo do que eu Caramba, seu Zé, mas tá tão na cara assim Só porque ele usa o moletom da faculdade Aliás, que moletom mais cheiroso, seu Zé.
Que será que tá acontecendo comigo, heim Ando muito a fim desses garotinhos que ligam pra avisar a mãe que não vão voltar.
Será que é a crise dos 30, Zé Ou será que já que o cérebro de um de 20 é o mesmo que o de um de 50, então pelo menos vamos ficar com o melhor desempenho na corrida dos 100 metros rasos Essa vida viu, Zé.
Pode ser boa que é uma coisa.
Já chorei muito, já doeu muito esse coração.
Mas agora tô, ó, tá vendo De pedra.
Uma tora.
Um macho.
Na quarta eu não vi o senhor, mas será que o senhor me viu chegando cedinho, com o dia amanhecendo Balada, Zé.
E da boa.
Sabe quem tava lá Esse mesmo.
Ele que veio me trazer, o senhor não viu Ah, o senhor viu Que vergonha.
Eu tava meio caindo pelas beiradas não era Era sono.
Tá, um pouco disso e um pouco daquilo também, mas basicamente sono.
O senhor não viu ele indo embora Então somos dois.
Mas vou confessar pro senhor: adoro quando eles vão embora sem me dar nenhum trabalho.
Se eu cobro Que é isso, seu Zé! Tá louco Sou menina de família! Escritora, publicitária e à espera de um grande amor.
Mas to me divertindo, ué.
Não é isso que mandam a gente fazer Quando a gente chora e escreve aquele monte de poesia profunda.
Quando a gente se apaixona e tudo mais e enche o saco dos amigos com aquela melação toda.
Não fica todo mundo dizendo pra gente parar de tanto drama e se divertir Poxa, tô só obedecendo todo mundo.
Não é isso que todo mundo acha super divertido Beber e fumar, e beber, e fazer sexo sem amor, e beber e fumar e dançar e chegar tarde e envelhecer e não sentir nada Sabe Zé, no começo doeu não sentir nada.
Mas eu consegui.
Eu não sinto nada.
Nada.
Uns vem, uns vão.
As garrafas tão lá, ao lado do lixo.
As cinzas saem dançando por aí.
As minhas vão junto.
No dia seguinte eu acordo, tomo um banho, passo protetor solar, sento na minha varanda com o meu jornalzinho e ó: nada.
Nadinha.
Nem pena do mundo eu consigo mais sentir.
Minha pureza era linda, Zé, mas ninguém entendia ela, ninguém acolhia ela.
Todo mundo só abusava dela.
Agora ninguém mais abusa da minha alma pelo simples fato de que eu não tenho mais alma nenhuma.
Já era, Zé.
É isso que chamam de ser esperto Nossa, então eu sou uma ninja.
Bate aqui no meu peito, Zé Sentiu o barulho de granito Quebrou o braço, Zé Desculpa.
Mas hoje é quinta, hoje tem visita.
Hoje tem risada alta, tem festinha, tem maquiagem e música.
O senhor promete que não me julga, Zé Eu sei que você se atrapalha, liga aqui pra cima e fica até mudo.
São tantos nomes, não é Mas é só fazer que nem eu: chama todo mundo de “o outro”.
Todos são outros.
Porque o de verdade, Zé, o de verdade não existe.
A gente chora, escreve lá umas poesias profundas, chora, mas um dia a gente acorda e descobre que esse aí não existe não.
Amanhã é sexta, um novo dia.
Um novo outro qualquer.
Eu queria te dizer que eu sinto muito, Zé.
Mas eu não posso te dizer isso porque a verdade é que eu não sinto mais nada.
Nadinha, Zé.

Mais um domingo que você me liga.
Igual faz a uns quatro ou cinco anos.
Você beija a sua mãe depois do churrasco, dá um oi carinhoso e finalmente pensa sem culpa na sua ex, cheira sua camiseta pra ver se a coisa tá muito feia e descobre que sua vida está prestes a ficar vazia: chegou a hora de me ligar.
Você não sabe ao certo o que vê em mim, mas também não sabe ao certo o que não vê.
Você sabe que pode ter uma mulher mais gostosa do que eu, mas por alguma razão prefere a gostosa garantida, aquela que ainda ri das suas piadas.
Mesmo sendo as mesmas piadas há quatro ou cinco anos.
Aí você me liga, com aquele ar descompromissado e meigo de quem só quer ir no cinema com uma velha amiga.
Eu não faço a menor idéia do que vejo em você, mas também não faço idéia do que não vejo.
Eu posso ter um cara mais gostoso, como de fato já tive milhares de vezes.
Mas por alguma razão prefiro suas piadas velhas e seu jeito homem de ser.
Você é um idiota, uma criança, um bobo alegre, um deslumbrado, um chato.
Mas você é homem.
E talvez seja só por isso que eu ainda te aguente: você pode ter todos os defeitos do mundo, mais ainda é melhor do que o resto do mundo.
Aí a gente, sem saber ao certo o que está fazendo ali, mas sem lugar melhor para estar, acaba pulando o cinema que nunca existiu e indo direto ao assunto.
O mesmo assunto de quatro ou cinco anos que, assim como as suas piadas, nunca cansam ou enjoam.
E aí acontece um fenômeno muito estranho comigo.
Mesmo quando não é bom, mesmo quando cansado e egoísta você não espera por mim e vira pro lado pra dormir ou pra voltar à sua bolha egocêntrica de tudo o que é seu, eu sempre me apaixono por você.
Todas as vezes que te vi, nesses últimos quatro ou cinco anos, eu sempre me apaixonei por você.
Eu sempre estive pronta pra começar algo, pra tomar um café de verdade, pra passear de mãos dadas no claro, pra poder te apresentar ao sol sem receber mensagens de gente louca ou olhares curiosos, pra escutar uma piada nova.
E você sempre ignorou esse fato, seguindo seu caminho que sempre é interrompido pelo vazio da sua camiseta fedendo a churrasco.
Eu nunca vou entender.
Eu nunca vou saber porque a vida é assim.
Eu nunca vou entender porque a gente continua voltando pra casa querendo ser de alguém, ainda que a gente esteja um ao lado do outro.
Eu nunca vou entender porque você é exatamente o que eu quero, eu sou exatamente o que você quer, mas as nossas exatidões não funcionam numa conta de mais.
Eu só sei que agora eu vou tomar um banho, vou esfregar a bucha o mais forte possível na minha pele e vou me dizer pela milésima vez que essa foi a última vez que vou ficar sem entender nada.
Mas aí, daqui uns dias, igual faz há uns cinco ou seis anos, você vai me ligar.
Querendo pegar aquele cineminha, querendo me esconder como sempre, querendo me amar só enquanto você pode vulgarizar esse amor.
Me querendo no escuro.
E eu vou topar.
Não porque seja uma idiota, não me dê valor ou não tenha nada melhor pra fazer.
Apenas porque você me lembra o mistério da vida.
Simplesmente porque é assim que a gente faz com a nossa própria existência: não entendemos nada, mas continuamos insistindo.