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Contos Cecilia Meireles

Mar Absoluto
Foi desde sempre o mar,
E multidões passadas me empurravam
como o barco esquecido.
Agora recordo que falavam
da revolta dos ventos,
de linhos, de cordas, de ferros,
de sereias dadas à costa.
E o rosto de meus avós estava caído
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas,
e pelos mares do Norte, duros de gelo.
Então, é comigo que falam,
sou eu que devo ir.
Porque não há ninguém,
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos.
E tenho de procurar meus tios remotos afogados.
Tenho de levar lhes redes de rezas,
campos convertidos em velas,
barcas sobrenaturais
com peixes mensageiros
e cantos náuticos.
E fico tonta.
acordada de repente nas praias tumultuosas.
E apressam me, e não me deixam sequer mirar a rosa dos ventos.
"Para adiante! Pelo mar largo!
Livrando o corpo da lição da areia!
Ao mar! Disciplina humana para a empresa da vida! "
Meu sangue entende se com essas vozes poderosas.
A solidez da terra, monótona,
parece mos fraca ilusão.
Queremos a ilusão grande do mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.
Queremos a sua solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe ao mesquinho formigar do mundo,
e faz o tempo inteiriço, livre das lutas de cada dia.
O alento heróico do mar tem seu pólo secreto,
que os homens sentem, seduzidos e medrosos.
O mar é só mar, desprovido de apegos,
matando se e recuperando se,
correndo como um touro azul por sua própria sombra,
e arremetendo com bravura contra ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido.
É o seu grande exercício.
Não precisa do destino fixo da terra,
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.
Tem um reino de metamorfose, para experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.
Baralha seus altos contrastes:
cavalo, épico, anêmona suave,
entrega se todos, despreza ritmo
jardins, estrelas, caudas, antenas, olhos, mas é desfolhado,
cego, nu, dono apenas de si,
da sua terminante grandeza despojada.
Não se esquece que é água, ao desdobrar suas visões:
água de todas as possibilidades,
mas sem fraqueza nenhuma.
E assim como água fala me.
Atira me búzios, como lembranças de sua voz,
e estrelas eriçadas, como convite ao meu destino.
Não me chama para que siga por cima dele,
nem por dentro de si:
mas para que me converta nele mesmo.
É o seu máximo dom.
Não me quer arrastar como meus tios outrora,
nem lentamente conduzida.
como meus avós, de serenos olhos certeiros.
Aceita me apenas convertida em sua natureza:
plástica, fluida, disponível,
igual a ele, em constante solilóquio,
sem exigências de princípio e fim,
desprendida de terra e céu.
E eu, que viera cautelosa,
por procurar gente passada,
suspeito que me enganei,
que há outras ordens, que não foram ouvidas;
que uma outra boca falava: não somente a de antigos mortos,
e o mar a que me mandam não é apenas este mar.
Não é apenas este mar que reboa nas minhas vidraças,
mas outro, que se parece com ele
como se parecem os vultos dos sonhos dormidos.
E entre água e estrela estudo a solidão.
E recordo minha herança de cordas e âncoras,
e encontro tudo sobre humano.
E este mar visível levanta para mim
uma face espantosa.
E retrai se, ao dizer me o que preciso.
E é logo uma pequena concha fervilhante,
nódoa líquida e instável,
célula azul sumindo se
no reino de um outro mar:
ah! do Mar Absoluto.

Houve um tempo em que a minha janela se abria para um chalé.
Na ponta do chalé brilhava um grande ovo de louça azul.
Nesse ovo costumava pousar um pombo branco.
Ora, nos dias límpidos, quando o céu ficava da mesma cor do ovo de louça, o pombo parecia pousado no ar.
Eu era criança, achava essa ilusão maravilhosa e sentia me completamente feliz.
   Houve um tempo em que a minha janela dava para um canal.
No canal oscilava um barco.
Um barco carregado de flores.
Para onde iam aquelas flores Quem as comprava Em que jarra, em que sala, diante de quem brilhariam, na sua breve existência E que mãos as tinham criado E que pessoas iam sorrir de alegria ao recebê las Eu não era mais criança, porém a minha alma ficava completamente feliz.
   Houve um tempo em que minha janela se abria para um terreiro, onde uma vasta mangueira alargava sua copa redonda.
À sombra da árvore, numa esteira, passava quase todo o dia sentada uma mulher, cercada de crianças.
E contava histórias.
Eu não podia ouvir, da altura da janela; e mesmo que a ouvisse, não a entenderia, porque isso foi muito longe, num idioma difícil.
Mas as crianças tinham tal expressão no rosto, a às vezes faziam com as mãos arabescos tão compreensíveis, que eu participava do auditório, imaginava os assuntos e suas peripécias e me sentia completamente feliz.
   Houve um tempo em que a minha janela se abria sobre uma cidade que parecia feita de giz.
Perto da janela havia um pequeno jardim seco.
Era uma época de estiagem, de terra esfarelada, e o jardim parecia morto.
Mas todas as manhãs vinha um pobre homem com um balde e em silêncio, ia atirando com a mão umas gotas de água sobre as plantas.
Não era uma rega: era uma espécie de aspersão ritual, para que o jardim não morresse.
E eu olhava para as plantas, para o homem, para as gotas de água que caíam de seus dedos magros e meu coração ficava completamente feliz.
   Mas, quando falo dessas pequenas felicidades certas, que estão diante de cada janela, uns dizem que essas coisas não existem, outros que só existem diante das minhas janelas e outros, finalmente, que é preciso aprender a olhar, para poder vê las assim.