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Carta para uma Pessoa Especial

O Guardador de Rebanhos
V
Há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das coisas
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do mundo
Não sei.
Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar.
É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das coisas Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o Sol
E a pensar muitas coisas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o Sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do Sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do Sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica Que metafísica têm aquelas árvores
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas.
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
Nem saber que o não sabem
«Constituição íntima das coisas»
«Sentido íntimo do Universo»
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em coisas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das coisas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo dos coisas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo me: Aqui estou!
( )

Adiamento
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico
Esta espécie de alma
Só depois de amanhã
Hoje quero preparar me,
Quero preparar rne para pensar amanhã no dia seguinte
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar me ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã
Quando era criança o circo de domingo divertia rne toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar se á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital
Mas por um edital de amanhã
Hoje quero dormir, redigirei amanhã
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo
Antes, não
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã
Sim, talvez só depois de amanhã
O porvir
Sim, o porvir