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Fernando Pessoa

E que fresco e feliz horror o de não haver ali ninguém! Nem
nós, que por ali íamos, ali estávamos Porque nós não éramos
ninguém.
Nem mesmo éramos coisa alguma Não tínhamos
vida que a morte precisasse para matar.
Éramos tão tênues e
rasteirinhos que o vento do decorrer nos deixara inúteis e a hora
passava por nós acariciando nos como uma brisa pelo cimo de
uma palmeira.
Não tínhamos época nem propósito.
Toda a finalidade das
coisas e dos seres ficara nos à porta daquele paraíso de ausência.
Imobilizar se, para nos sentir senti la, a alma rugosa dos
troncos, a alma estendida das folhas, a alma núbil das flores, a
alma vergada dos frutos
E assim nós morremos a nossa vida, tão atentos separadamente
a morrê la que não reparamos que éramos um só, que cada
um de nós era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o
mero eco do seu próprio ser
Zumbe uma mosca, incerta e mínima
Raiam na minha atenção vagos ruídos, nítidos e dispersos, que
enchem de ser já dia a minha consciência do nosso quarto
Nosso quarto Nosso de que dois, se eu estou sozinho Não sei.
Tudo se funde e só fica, fingindo, uma realidade bruma em que
a minha incerteza soçobra e o meu compreender me, embalado
de ópios, adormece
A manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora.
..
Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida,
as achas dos nossos sonhos
Desenganemo nos da esperança, porque trai, do amor, porque
cansa, da vida, porque farta, e não sacia, e até da morte, porque
traz mais do que se quer e menos do que se espera.
Desenganemo nos, ó Velada, do nosso próprio tédio, porque
se envelhece de si próprio e não ousa ser toda a angústia que é.
Não choremos, não odiemos, não desejemos
Cubramos, ó silenciosa, com um lençol de linho fino o perfil
hirto da nossa Imperfeição

TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam ),

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

Saio da janela, sento me numa cadeira.
Em que hei de pensar
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou
Ser o que penso Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe Nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo
Não, nem em mim

O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem crescesses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo

Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram me logo por quem não era e não desmenti, e perdi me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

A liberdade é a possibilidade do isolamento.
És livre se podes afastar te dos homens, sem que te obrigue a procurá los a necessidade de dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento.
Se te é impossível viver só, nasceste escravo.
Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre.
E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente.
Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo.
Ai de ti se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres.
Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.
A morte é uma libertação porque morrer é não precisar de outrem.
O pobre escravo vê se livre à força dos seus prazeres, das suas mágoas, da sua vida desejada e contínua.
Vê se livre o rei dos seus domínios, que não queria deixar.
As que espalharam amor vêem se livres dos triunfos que adoram.
Os que venceram vêem se livres das vitórias para que a sua vida se fadou.
Por isso a morte enobrece, veste de galas desconhecidas o pobre corpo absurdo.
É que ali está um liberto, embora o não quisesse ser.
É que ali não está um escravo, embora ele chorando perdesse a servidão.
Como um rei cuja maior pompa é o seu nome de rei, e que pode ser risível como homem, mas como rei é superior, assim o morto pode ser disforme, mas é superior, porque a morte o libertou.
Fecho, cansado, as portas das minhas janelas, excluo o mundo e um momento tenho a liberdade.
Amanhã voltarei a ser escravo; porém agora, só, sem necessidade de ninguém, receoso apenas que alguma voz ou presença venha interromper me, tenho a minha pequena liberdade, os meus momentos de excelsis.
Na cadeira, aonde me recosto, esqueço a vida que me oprime.
Não me dói senão ter me doído.

[ ] Mas imperfeito é tudo, nem há poente tão belo que o não pudesse ser mais, ou brisa leve que nos dê sono que não pudesse dar nos um sono mais calmo ainda.
E assim, contempladores iguais das montanhas e das estátuas, gozando os dias como os livros, sonhando tudo, sobretudo, para o converter na nossa íntima substância, faremos também descrições e análises, que, uma vez feitas, passarão a ser coisas alheias, que podemos gozar como se viessem na tarde.
Não é este o conceito dos pessimistas, como aquele de Vigny, para quem a vida é uma cadeia, onde ele tecia palha para se distrair.
Ser pessimista é tomar qualquer coisa como trágico, e essa atitude é um exagero e um incómodo.
Não temos, é certo, um conceito de valia que apliquemos à obra que produzimos.
Produzimo la, é certo, para nos distrair, porém não como o preso que tece a palha, para se distrair do Destino, senão da menina que borda almofadas, para se distrair, sem mais nada.
Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo.
Não sei onde ela me levará, porque não sei nada.
Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros.
Não sou, porém, nem impaciente nem comum.
Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os
que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cômodas até mim.
Sento me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.
Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência.
Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá la, e não interrogo mais nem procuro.
Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê los também na passagem, será bem.
Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também.