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Fernando Pessoa

Alma e Realidade, Duas Paisagens Sobrepostas
1 Em todo o momento de atividade mental acontece em nós um duplo fenômeno de percepção: ao mesmo tempo que temos consciência de um estado de alma, temos diante de nós, impressionando nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
2 Todo o estado de alma é uma passagem.
Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem.
Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita.
Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito.
E mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem pode ao menos admitir se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem.
Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3 Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens.
Ora, essas paisagens fundem se, interpenetram se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma é de todos os tempos dizer se, sobretudo em verso, coisas como que «na ausência da amada o sol não brilha», e outras coisas assim.
De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior.
Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens.
Têm de ser duas paisagens, mas pode ser não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior.
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POEMA EM LINHA RETA
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe todos eles príncipes na vida
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo
Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.